Sunday, April 25, 2004

Brejo Amarelo

Capítulo I

Descendo os montes cobertos de faias, abetos, pinheiros selvagens, frívolas e algumas espécies florais, vinham em direção à pequena Gorízia, dois homens altos, brancos e com vestimentas para o trabalho no campo. A plantação de batata ficava nas pequenas enconstas ao sopé das montanhas e era o meio de subsistência de quase toda a população do vilarejo. João Busik, o mais novo, contando com seus dezoito anos, de uma virilidade estupenda, olhos azuis, cabelos avermelhados pelo sol, de uma tez rosada que fazia inveja à mais bela rapariga do povoado. Augusto Bushin, um ano mais velho que o seu colega, olhos verdes, pele amorenada, cabelo castanho-claro e com uma leve queda para os vícios que se impõem à mocidade. Vinham chutando algo parecido com uma bola e cantando a mais nova canção que era executada nas festas que por ali aconteciam. Ao chegarem ao vilarejo, que contava com um pouco mais de quinhentos habitantes, decididos a tomar um trago na cantina da Mama Antonucci, vem correndo em direção a eles uma bela rapariga que atendia por nome de Atti, gritando para que se escondessem imediatamente, sem saber que uma bala voava para o seu braço direito, indo acertar em cheio no cotovelo bem delineado. O sangue jorrava e já quese desfalecida é amparada por quatro braços fortes que a levam bem depressa para um pequeno beco na mesma rua em que estavam.
- Atti, conte-nos o que está acontecendo! Por favor, fale depressa!
- Gusto, não vês que ela está mal, devemos procurar um médico imediatamente.Rasgue um pedaço de pano da combinação dela para estancarmos a hemorragia; rápido homem.- Atti estava suando e mesmo assim tentava dizer-lhes algo com muita dificuldade.
- João... Gusto... fugir para longe... guerra se aproxima da Gorízia.- Começou a tossir e desmaiou deixando-os ainda mais preocupados.
- E agora João, para onde a levaremos?
- Vamos ao Doutor Benito quem mora perto. Lá poderemos conversar com mais calma.
O dia já estava terminando e anoitecia rapidamente. Os dois jovens enveredaram-se com o corpo pelas ruas da vila se esguelhando para não serem percebidos, já que as forças de defesa dos montes estavam convocando todos pelas ruas. Eles deveriam chegar rapidamente ao médico, já que disto dependia uma vida. A casa estava rodeada de novos recrutas com seus bornais munidos, velhas cartucheiras e outras munições, além dos cantis pendurados para saciar a sede nos longos dias de calor que não tardariam por serem resfriados. O tempo parecia não passar e o medo tomava conta dos dois mais e mais; a Guerra, tinha dito Atti. O pensamento de ambos parecia ser o mesmo. Fugir... fugir para longe. Mas, antes de qualquer coisa o médico. Os pracinhas estavam se retirando e o comandante dizia alguma coisa em italiano que de tão apressados não conseguimos entender. Agora só nos restava entrar para ver o médico. E, foi o que fizemos. Ao batermos na porta, fomos atendidos pela governanta que logo foi mandando que colocássemos a rapariga na mesa de operações e que o Doutor estava se preparando para retirar a bala do braço. Como ele já sabia não sabíamos, porém imaginávamos.
Passados uns dez minutos, ele veio já com a bala na mão, com um sorriso amigo e explicando todos os detalhes.
- Sr. Benito, ela não vai ficar aleijada, vai? – A preocupação era estampada no rosto de ambos.
- Ora essa, Gusto. Ela é uma moça forte, não seria uma bala que a abalaria, não é? – João, sempre otimista, via o mal sempre com olhos de bondade; mas o Doutor os aliviara.
- Os dois podem aguardar até amanhã aqui mesmo. Eu já pedi para preparar o quarto para vocês. Durmam bem e amanhã levantem cedo, pois farão uma longa viagem, e não me perguntem nada.
Guiados pela governanta, passaram pelo quarto onde repousava Atti, e nunca viram beleza tamanha. Deitada em uma cama coberta com um cetim resplandecente pela luz do candeeiro, e com o contraste dourado pelo luar que entrava pela janela e banhava o seu cabelo negro parecido com o barro encontrado onde nascem os rios daquela parte da Itália e que servem para modelar os mais preciosos objetos de uso pelas moças prendadas; seus lábios despojados de carmim que tão bem delineia a sua face; seus olhos negros e chamativos, tão diferentes da beleza encontrada no norte. A suavidade se espalhava por todo quarto. Embevecidos já e quase a ponto de se atirarem na cama, são tolhidos pela governanta que fecha a porta e pede que a acompanhem.
- Este é o quarto de vocês. Deixem suas roupas no cabide para serem lavadas. No embrulho tem duas mudas novas para cada um e um par de sapatos embaixo de cada cama. Lavem-se e durmam com Deus. – Os dois responderam em coro uma Amém mecânico, já que a religião não lhes era inerente. – Se precisarem é só chamar.
Em cima de uma pequena mesa haviam algumas frutas e enquanto Gusto tomava banho, João se deliciava com o sabor e o amargor de seus pensamentos. As frutas o aoçavam e o que Atti lhes dissera o feria imensamente. Por que justo agora que tudo parecia em paz haveria de se desencadear uma guerra. Talvez não passasse de uma simples revolução que não chegaria a fazer diferença. Mas, ela havia sido muito clara entre os espasmos e as plavras balbuciadas. Eles deveriam fugir. Fugir para onde? Nunca haviam saído daquele norte que nunca mostrava nada de novo, as notícias ali mal chegavam, e o que acontecia no resto do mundo, se é que ele existia, ninguém ficava sabendo. A guerra chegara. E por que tanta gene interessada em ajudar-nos?
- Gusto, termina logo esse banho, que eu já estou quase dormindo.
- Calma, já estou terminando.
Não demorou muito e Gusto saiu do banheiro em sua samba-canção nova, indo direto para a fruteira em busca de alimento.
- Para onde será que nos mandarão nosso protetores? Você realmente está a fim de fugir da Guerra, João? Não seria mais fácil ficarmos por aqui e lutarmos junto com as forças convocadas? Afinal é o nosso país!
- Pode ser o nosso país, mas ele nunca nos ofereceu nada. Taxas altas, impostos fantasmas, isso é tudo o que o nosso país nos dá. Nós damos o duro na lavoura de batata para quê? Parra no fim de nossas vidas morrermos como nossos pais. Massacrado por uma revolução burocrática para exterminar um pouco dos italianos aqui existentes! A água está um pouco fria, mas estaremos numa fria se permanecermos por aqui. Não sei você, mas eu vou seguir viagem junto com Dr. Benito e com mais quem vier com a gente. Passe-me a toalha por favor.
- João, não é assim, você já pensou se nos pegam? O que pode acontecer? E, ainda tem o problema de Atti. Ela está ferida!
- O Doutor vai com a gente!
- Mas, é uma viagem dura, longa até mesmo para nós que somos jovens!
- Deixemos para pensar na viagem mais tarde. Vamos nos deitar e pensarmos quando já estivermos bem longe daqui. Boa noite.
- Boa noite. Porém, ainda acho que deveríamos pensar bem antes de tomarmos decisões.
- Boa noite, Gusto. – Agora estava meio irritado e Gusto percebendo isso deu as costas para João e fingiu dormir. A cama parecia o cárcere, e estando longe de casa não via como poder dormir. Virava para um lado e para o outro, esticava as pernas e nada de arrumar. João estava já no terceiro sono quando ouviu-se do lado de fora alguns tiros e tropelo de alguns animais. Imediatamente, pularam da cama e vestiram suas roupas indo encontrar com Benito no corredor.
- O que foi isso? Perguntou Gusto parecendo estar com medo e já suando a ponto de molhar sua camisa nova.
- Nada. Precisamos sair daqui o mais rápido possível. O Doutor incentivava. – As forças do Doutor Giuseppe Mazzini estão prontas para combater os Renegados Alpinos que querem o afastamento do Governador Diego Mantenelli. A situação vai ficar crítica. Eu já havia reservado passagem em uma diligência que sai a qualquer hora que eu necessite. João, vá pegar a Atti enquanto eu e os outros arrumamos as coisas. Gusto vá acordar a Senhora Ciappo, que parece uma pedra depois de deitada. Rápido todos vocês, rápido. – As ordens iam sendo obedecidas rapidamente, enquanto lá fora o tumulto aumentava.
- Atti, acorde! Vamos, acorde! Precisamos ir embora deste lugar para sempre. Acorde querida, acorde! – Ele pegava suavemente em suas mãos e ao sentir que ela despertava, tomou-a nos braços e dirigiu-se para a diligência que os aguardava nos fundos da casa.
- Rápido, deite-se no banco acolchoado e entrem rápido. Vamos Cia, suba rápido, você está nos atrasando! – A senhora Ciappo ficou irradiante e por um momento deu graças a Deus por estar indo embora com o Doutor, ainda mais agora que a tinha chamado por Cia. Teria longos momentos com ele. Ela podia pressentir isto e em meio a tanta desgraça, ainda assim conseguia sorrir. – Rápido cocheiro, vamos direto para Vicenza, porém não force muito os cavalos. Temos todo tempo do mundo longe desse pandemônio.
Deixando o tiroteio para trás, os integrantes daquela troupe não entendiam o porquê de tanta agitação e de tantos acontecimentos em tão pouco tempo. Como poderiam vidas assumir tão caudalosos caminhos em tão curto espaço de tempo. Apenas olhavam para trás e imaginavam se um dia voltariam àquele lugar. Porém, antes de dobrarem a última curva, pudemos ouvir um estrondo como o de um trovão e ver um lampejo avermelhado subindo m direção às nuvens. Quem teria vencido? Nas mãos de quem estaria Gorízia agora? Muitas dúvidas surgiam, mas a decisão já havia sido tomada.

Capítulo II

A paisagem à borda da estrada era maravilhosa. Os olhos buscavam explicações nos altos pinheiros selvagens que, com o seu verde faziam um belo contraste com o azul avermelhado pelo sol que despontava detrás dos montes. Olhos buscavam em outros olhos explicações, mas não as encontrava. Alguém deveria saber o que tinha acontecido, e esse alguém deveria ser o Doutor Benito. Todos se voltaram parra ele e juntos fizeram a mesma pergunta. – O que está acontecendo? Mas a resposta foi um longo silêncio quebrado somente pelo gemido de Atti, que, pelo desconforto da viagem começava a sentir dores no corpo. Variava às vezes chamando sua mãe que havia deixado para trás e nem o sabia. A vegetação agora estava mais densa, e o frescor emanado da sombra que rodeava a diligência trazia o perfume das pequenas flores à beira do caminho. E, foi com o perfume que o silêncio foi quebrado.
- Doutor Benito, sei que o Senhor não está com vontade de falar nesse momento, mas é importante que tenhamos algumas respostas. Nós não deixamos ninguém para trás, contudo Atti tem uma mãe em Gorízia. – João foi o primeiro a lhe dirigir a palavra.
- Não, ela não tem mais uma mãe lá. Antes de sairmos fui chamado para atende-la e já estava morta. Assim, nada nos impede de continuarmos nosso caminho.
Deixamos a terra plantada. – Atalhou Gusto. – E, nem mesmo sabemos por que cargas d´água o Senhor está tão preocupado conosco. Estamos fugindo de nossas obrigações.
- Não. Vocês não estão fugindo de vossas obrigações. Muito pelo contrário.
- Como não estamos fugindo? Acaso isso não é deserção? Ou o Senhor tem outro nome? – João estava um pouco exaltado.
- Não estão fugindo, não. Está tudo arranjado. Assim que chegarmos em Gênova, tomaremos um navio e seguiremos para uma terra que promete muito. Lá sim vocês serão verdadeiros lavradores.
Mais uma vez o silêncio tomava conta e boquiabertos não conseguiam perguntar mais nada. Atti estava bem. Não havia resquícios de febre e mais à tarde já deveria estar acordada e pronta para nadar e fazer algumas coisas leves. A viagem prosseguia sem que tivéssemos encontrado alguém pelo caminho, e como já entardecia, o cocheiro, um homem simples, de chapéu de abas estreitas e calça e camisa molhadas pelo suor disse que deveríamos passar a noite em algum lugar por ali, já que os cavalos estavam cansados , e a viagem durante a noite, mesmo com a luz da lua, se tornaria difícil. Consentindo com tal decisão, Doutor Benito pediu que montássemos uma barraca para eles pernoitarem e sugeriu que as mulheres dormissem nos bancos acolchoados da diligência. Uma fogueira foi feita para aquecer o corpo, pois o frio durante a noite se acentuava naquela região baixa e entre árvores. Atti, já percorrendo curtos caminhos foi seguida por João que sentia-se cada vez mais atraído por aquela beleza que também era cobiçada por seu primo e companheiro. Dar a notícia da morte da sua mãe não era algo fácil, mas deveria se feito por alguém e tomou coragem quando percebeu que ainda a beleza do seu olhar o enfeitiçava.
- Atti, querida, você é tão jovem, tão bela! Senta aqui perto de mim que eu preciso lhe falar.
- Fla que eu estou ouvindo. – Parecia uma ilusão ouvir sua voz doce pela primeira vez desde que havíamos saído da Gorízia. – O braço ainda me dói, e eu prefiro ficar um pouco em pé.
- Tudo bem, mas eu gostaria que você estivesse sentada ao ouvir essa notícia.
- Será que é o que eu estou imaginando?
- O que você imagina, minha querida?
- Ah! Não estará querendo me pedir em casamento? Ou quem sabe pedir para que eu seja a sua amante incondicional?
- Não é nada disso sua tolinha! O assunto é sério. Antes de sairmos de Gorízia, o Doutor Benito fez uma visita para a sua mãe...e...
- Não! Não termine por favor... Você quer dizer que ela...Oh! João , que coisa horrível! Como a guerra pode ser tão má para com a gente? Como? – Atti se debatia nos braços de João e este a acalentava dizendo palavras frívolas, porém consoladoras. Ela continuou a chorar por um longo tempo nos ombros dele, até que se afastou decidida.
- Meu destino já era traçado. Eu vou seguir com vocês até onde forem. Se é assim que devemos terminar, assim terminaremos.
- Voltemos para junto dos outros que já devem estar preocupados. – Mal disse isso e sentiram que Gusto se aproximava rapidamente.
- Doutor Benito pede que vocês se apressem, pois devemos sair bem cedo.
- Já estamos indo, não estamos querida?
- Sim. Vamos que já está ficando tarde. – Os três dirigiram-se para a diligência e no olhar de Augusto podia-se perceber o amargo sabor da derrota.
A noite já ia alta quando Gusto sentindo vontade de satisfazer uma das suas necessidades fisiológicas, levantou-se e dirigiu para um dos lados da barraca suas pernas cansadas. Em meio a isso, pareceu ouvir um barulho das patas de um cavalo que estava ali por perto. De olhos e ouvidos atentos, ele caminhou um pouco mais para a direita e percebeu que vinha para o lado deles um cavaleiro, que por estar um pouco escuro, não distinguia a fisionomia. Ao aproximar-se da comitiva, sem retirar o capuz e a capa, desmontou apressadamente como alguém que já faz isso há muito tempo. Dirigindo-se par o seu lado, pode apenas observar a luz que emanava dos olhos em sua direção. Permaneceu ali imóvel, sem poder tomar uma decisão. Parecia uma bruxa, uma princesa... uma princesa de Avignon. Lá sim moravam as princesas, lá elas cresciam e procuravam esposos. O que estaria ela fazendo tão distante de sua terra? A mágica da ela princesa o envolveu por instantes que pareceram eternidade. Ela o havia beijado e seduzido para o capim espesso que cobria a terra fértil daquele espaço. Foi arrebatado parra o mundo do conto-de-fadas e naquele lugar parecia não existir guerras, amores perdidos, centelhas de dúvidas, fugas; tudo possuía uma ordem real e homens e mulheres caminhavam leves pelas Campinas floridas.
- Gusto, venha... venha par onde os lírios são o perfume que embriaga a noite, onde os animais são livres do assassínio humano, onde borboletas nunca foram larvas e onde o amor impera sempre...
- Não, eu tenho meus amigos aqui!
- Não resista, nessa terra, as delícias são inúmeras, o poder não corrompe o homem porque ele não existe, nós nos auto-governamos, somos donos de nós mesmos...
- Não, eu não quero ir. Eu não posso ir...
- Vamos poder sentar perto dos riachos e ficar observando a água correr mansamente, sem tormentas nem furacões... vamos poder sentir a liberdade que você nunca sentiu... aqui tudo é mais lindo! Venha... venha.. venha...
- Não! Não! Não!
- Ei, Gusto, acorde, vamos acorde rapaz! Você está todo amarrotado. Parece que brigou com um monstro!
- Que nada João, eu estava sonhando. E, algo me diz que devemos desistir dessa viagem maluca.
- Que nada! Os sonhos são inquietações dos dias anteriores. Não se perturbe. Arrume-se e vamos embora, as coisas já estão prontas.
- Depois não diga que eu não lhe avisei! – Guto continuava impressionado com o que tinha acontecido durante a noite.
Vicenza continuava um pouco distante de onde estávamos e o jeito foi continuarmos naquele caminho devagar e sempre. A saudade já começava a falar alto em nossos corações, e mesmo assim não olhavam para trás. O trote do cavalo marcava o compasso, juntamente com o assovio do cocheiro que já parecia fazer parte do grupo e havia dito querer participar de nossa viagem até no fim, ou seja a Nova Terra. A Senhora Ciappo agora mais entrosada, comentava trabalho com linha para Atti, que se mostrava cada vez mais curiosa em aprender. Doutor Benito lia um tratado científico acerca de lesões superficiais e alopecia androgenética, pelas quais era fascinado. Os dois jovens levantavam idéias do que fazer após chegarem ao destino prometido pelo Doutor e faziam cálculos do que deveriam comprar para seguirem viagem. Mais uma vez, a tarde chegara e uma chuvinha fina teimava em cair quando o cocheiro Camillo avistou mais ao longe uma fazenda. Doutor Benito sugeriu que ele para lá os levasse.
- Boa tarde. Poderia informar onde estamos?
- Boa tarde. Vocês estão na fazenda Regatto. Eu sou Grigorinno Regatto à sua disposição. Vamos entrar.
- O Senhor tem uma bela fazenda aqui, Senhor Grigorinno, aliás uma das mais belas que eu já conheci.
- Enquanto os outros desciam as coisas da diligência e as senhoras se lavavam juntamente com as outras mulheres da casa, Doutor Benito e Senhor Grigorinno continuavam a animada conversa.
- Doutor Benito, o que faz um homem como o Senhor por estas bandas, que mal lhe pergunte.
- Estamos empreendidos em uma viagem para as Novas Terras. A Itália está se tornando perigosa para as pessoas.
- Realmente, o Governador Diego Mantenelli vem provocando alts confusões durante o seu mandato. Já está na hora de alguém cortar o pescoço dele.
- Bem, enquanto isso não acontece, vamos tocando o bonde.
- O Senhor aceita um aperitivo antes de tomar um banho? A refeição já está quase pronta.
- Aceito. Obrigado. – Doutor Benito era muito sociável e não faria nada que pudesse atrapalhar nossa estada ali naquela noite.
- Estávamos sentados à mesa, e , após terem sido feitas as orações de praxe, os alimentos foram sorvidos com gana, já que fazia algum tempo que não comíamos à mesa. Gusto sentado ao lado de uma ragazza bonita não tirava os olhos e parecia ter ficado congelado pela filha mais nova da família Regatto. Anna Badaglio Regatto, olhos castanho-claros , cabelos encaracolados, corpo sensual e muito conversadeira, não demorou para cativar Gusto, que ficou parecido com manteiga derretida. O silêncio imperou durante todo o jantar, e logo após fomos convidados para a sala onde poderíamos conversar mais sobre aquela família e suas atividades. O primeiro a dirigir alguma palavra foi Gusto, e justamente para a belíssima Anna.
- Anna, você não quer mostrar-me o jardim? A noite está linda e assim poderíamos conversar um pouco mais à vontade. O Senhor nos permite, não é? – Dirigindo-se ao pai da moça.
- Vá Anna, mas não se distancie da área coberta, pois a chuva pode-lhe fazer mal.
- Está bem, papai.
- Que tal nós fazermos companhia a eles, Atti?
- Tudo bem, vamos!
Enquanto os quatro se dirigiam para o jardim coberto, na sala, as duas senhoras e mais as outras duas filhas conversavam sobre trançados de linhas e outras futilidades; os dois velhos faziam longos discursos políticos, criticavam o cristianismo e seus padres, falavam dos tempos bons da juventude quando a Itália era ainda um país em desenvolvimento e sem guerras. Um café foi servido e a conversa continuou animadoramente.
- Então, como eu estava dizendo antes, o governador deveria ter um pulso menos rígido, pois o povo está pagando o que não deve desde que eu me entendo por gente, e olha que papai reclamava, vovô reclamava, parece que isso não tem fim. Quando chegaremos a um consenso entre homens e poder. Hitler ataca com vias duvidosas e o povo está amedrontado. Não sei onde vamos chegar.
- Senhor Gregorinno, não seremos nós, ainda , que endireitaremos este Velho Mundo. As facções podem ir por diversos lados, mas no final todos encontrarão um ponto em comum. O Senhor pode acreditar nisso.
- Se o Senhor diz!
- Acho melhor nós nos deitarmos, amanhã deveremos partir cedo para Vicenza. Vou chamar os rapazes.
- E eu vou pedir para prepararem os leitos. Até amanhã. – A noite fechou-se sobre todos e enquanto dormiam em suas camas, sossegadamente, mais acima, uma guerra parecia não ter fim.
- O dia raiou sem a chuva. Um sol diferente nascia e a esperança de que seria melhor do que os anteriores fazia-se perceber no semblante de cada um durante o café. O cocheiro veio avisar que os cavalos estavam atrelados e já poderiam seguir viagem. As despedidas foram rápidas e logo se viram a caminho.

Capítulo III

Dias e noites viajamos para chegar aVicenza. E, foi numa tarde ensolarada que avistamos os primeiros sinais de civilização. A torre alta da igreja, os telhados avermelhados das casas e as árvores sedentárias que cobriam quase toda a região. Uma enorme cadeia de montes com suas florestas de pinheiros selvagens e castanheiros, culturas de aveia, batata e arroz em imensos campos cultiváveis. Por onde passávamos, sentíamos a vontade inquieta de permanecer, já que parecia tudo calmo. Ao aproximarmos mais, percebemos uma agitação um pouco familiar, assim preferindo ficar mais afastados do interior da cidade, abastecendo-nos em um depósito mais a margem da estrada. Como ainda era de manhã, Anna e Atti pediram para comprar algumas peças femininas, das quais já estavam desprovidas. Assim que tudo foi arranjado seguimos viagem, achando realmente que seria impossível nós nos aproximarmos de uma decisão contrária à saída de nosso país. Anna havia forçado sua entrada na comitiva e quando foi descoberta levou o maior susto.
- O que faz você aqui no meio desses trapos velhos?
- Não me mande embora, Doutor. Eu deixei um bilhete para meu pai e ele não virá atrás porque eu disse estar apaixonada por Gusto e ele por mim. E, que nos casaríamos assim que chegássemos à Terra Nova.
- Está bem! Está bem! Só que a responsabilidade é toda sua e de Gusto, caso alguma coisa venha a lhes acontecer.
- Oh! Gusto, não é maravilhoso podermos ficar juntos?
- Realmente, Anna, você me surpreendeu e estou muito feliz por isso. Avignon realmente ousou me presentear não com uma de suas princesas, mas com a princesa mais linda.
- Bem, agora que está tudo esclarecido, vocês poderiam deixar-me a sós com a Cia, por favor.
- Claro, vamos dar uma volta.
- Cia, agora que eles já estão distantes, quero lhe dizer que tenho sentido sua falta e que me desculpe por alguma falha.
- Ah! Doutor, não tem do que se desculpar. Mas, temos um assunto mais sério para tratar. Anna tem tuberculose crônica e o médico de Vicenza não lhe deu muito tempo de vida. Precisa ser cuidada e talvez a terra para onde vamos possua um clima mais agradável.
- Então, a preocupação do pai em que ela saísse na chuva não era extremismo e sim por motivo sério. Eu bem que tinha percebido alguma coisa. O que mais você sabe que eu deveria saber?
- Nada. Só isso. Mas não devemos comunicar o fato a Gusto, que parece tão feliz ao lado dela. Deixemo-los viver até que Deus resolva tira-la dele.
- Realmente, não vamos tornar as suas vidas mais amargas. O tempo se encarregará disso.
- A agitação política está séria, não é Doutor? Corre boato que os portos de Gênova e os demais estão sendo fechados. E, se não conseguirmos chegar em tempo para o embarque?
- Eles não podem fechar os portos. Não por enquanto...
- Ah! Mas a Senhora Regatto me disse que nem a vegetação está mais tão bela quanto era. A política entristece até os animais no pasto.
- Isso é verdade Cia. O que nós podemos fazer senão fugir para não sermos mortos e preservarmos os nossos filhos bastardos dessa desorganização toda?
- É Benito, às vezes as razões são incompreensíveis!
- A viagem continuava sem maiores complicações. O braço de Atti estava ótimo e Anna apresentava problema algum. Até parece que a emoção de estar viajando a rejuvenescia e lhe dava forças para lutar contra tudo o que pudesse ser ruim para ela. Passamos por Verona, Cremona, Pávia e agora nos dirigíamos para Gênova, onde tomaríamos um navio em direção ao Estreito de Gibraltar, rompendo o Oceano Atlântico com os nossos desejos de liberdade. Havíamos saído de Pávia há dois dias, quando tivemos que parar para consertar uma das rodas que havia quebrado ao transpor uma pedra. Aproveitamos para almoçar ali mesmo. Enquanto as mulheres preparavam os alimentos, os homens cuidaram para que fosse consertada a roda e depois foram dar um mergulho num riacho próximo. Havia uma queda d’água de uns vinte metros aproximadamente e como nos aproximávamos do Mediterrâneo, ali já encontrávamos uma vegetação que lembrava as enseadas do mar Ligúrico; loureiros, alfarrobeiras, cipestres, larícios, pinheiros ainda selvagens, pois os marítimos se diferenciam um pouco destes por suas folhas. Avignon não deveria ser tão bela quanto àquele pedaço de terra. A água era de um azul que chegava a esverdear-se como o mar. A fauna e a flora ali faziam inveja ao mais belos ornamentos da igreja papal. Parecia que deveria me convencer a ficar, porém a decisão fôra tomada. Eu partiria contrariando a todos os mandatos, mesmo que fossem de Deus. A guerra não deixaria nem mesmo o cheiro do mais belo burguês que em suas águas e sais não se cansava de banhar. Por isso eu precisava conquistar Avignon, a Terra Nova. O almoço estava pronto, nos dirigimos para ele com toda volúpia do soldado que não come há um mês. O sabor dos alimentos era um presente divino, o cheiro deles um presente dos deuses do Olimpo e o formato da escultura mais perfeita feita pelo mais delicado escultor. Pensamentos foram interrompidos por um diálogo não muito interessante.
- Onde fica Avignon, Doutor?
- Onde fica o quê, Gusto?
- A Terra Nova, Doutor; Avignon. Onde tudo é perfeito e não se tem guerra, nem mortes, nem briga pelo poder.
- Além do mar... muito distante onde a terra é de todos e ninguém precisa brigar, porque ela é abundante.
- E tem terra para todos?
- Dizem que sim.
- Mas, e como iremos atravessar todo esse mar, meu Deus?
- Através de um navio, João. Você já viu um navio?
- Não, só nos desenhos da escola, quando eu estudava.
- Eles são bem parecidos.
- É verdade que podemos ter enjôos?
- Nem todos, nem todos... mas às vezes nós os temos fora dele mesmo, e em terra firme. Então não se preocupem com isso.
- Doutor, daria para o Senhor explicar agora por que estamos fugindo?
- Vocês não vêem que os soldados estão por toda parte, que se vocês fossem pegos já estariam mortos a uma hora dessas; jogados por aí com um monte de balas em suas cabeças, não entendem isso? Por que é que teimam em ficar tocando nesse assunto?
- É que somos estranhos para o Senhor. Nossos pais morreram na última revolução e não tínhamos mais parentes. Por que então nos ajuda? João estva um pouco irritado e ainda bem que Cia surge com uma sobremesa deliciosa para acalmá-los.
- Vamos adoçar os ânimos por aqui. Atti, Anna, João... calma todos, o caminho a percorrer é longo e não chegaremos inteiros ao nosso destino.
- Você está certa Cia, vamos fazer as pazes e não tocar mais nesse assunto.
- Ainda acho que o Doutor está escondendo alguma coisa. – disse Gusto dirigindo-se à diligência.
Mais um companheiro juntara ao grupo nessa última parada. Celitto, um homem de seus trinta e poucos anos, com pouco cabelo, físico de trabalhador braçal, porém amigável e solto em sua conversa, conquistara-nos com sua lábia. Após um longo papo decidiu patir com a gente, e assim era mais uma boca a ser alimentada, se bem que tinha umas reservas e colocou a nossa disposição. Estava cansado de trabalhar e nunca possuir nada. Vivia sonhando com o dia em que teria o seu torrão para plantar e descansar em paz. Tinha passado pela fazenda do pai de Anna dias atrás e foi assim que ficou sabendo da nossa existência. Trazia notícias deles e mandava lembrança a todos. Anna ficou irradiante e jurou escrever uma carta assim que pusessem os pés em Gênova. Mais uma vez a diligência partiu em direção a sua última parada em solo italiano. Gênova ficava a uns poucos metros do Mar Ligúrico e como toda cidade portuária, havia se desenvolvido bastante.O comércio se desenrolava com grande agitação. Os soldados movimentavam-se de lá para cá, e as pessoas despreocupadas pareciam nem se aperceber de tal detalhe na rotina da cidade. Os cafés estavam abertos e as pensões que existiam pareciam estar lotadas. Enquanto Anna e Atti foram despachar a carta para o Senhor Regatto, os homens foram descarregando a diligência com a ajuda de um servente da pousada onde ficaríamos. Alugamos dois quartos pequenos, dividindo assim o sexo feminino para u e o sexo masculino para o outro. Celito e Gusto disseram que iriam dormir na estalagem com os cavalos. Tiramos o pó das nossas couraças e logo em seguida estávamos reunidos para o jantar. O porteiro nos indicou um lugarzinho do outro lado da rua, e assim nos dirigimos para lá imediatamente.
- Por favor, pode nos arrumar uma mesa grande para que possamos nos sentar juntos? – solicitou o Doutor Benito muito calmamente ao rapaz que estava servindo os fregueses que ali estavam.
Sentamo-nos onde o ar era fresco e a brisa marítima não cansava de beijar a face das duas donzelas que ali estavam. Servimo-nos do macarrão e queijo, regados com um bom vinho. E após terminarmos, ainda em silêncio, fomos verificar onde era a Agência de Transportes Marítimos, o que não foi difícil. Assim que amanhecesse iria lá procurar um bom navio e o que partisse mais cedo. Voltamos para a pousada e dormindo sentimos o dia chegar novamente, e com ele mais surpresas. O cansaço não havia permitido que presenciássemos o fato, mas apenas um navio restara em todo aquele imenso porto. O ataque havia sido de surpresa. Os Alpinos haviam chegado sorrateiramente e atiraram fogo aos navios sem que houvesse tempo para defesa. Deus não havia nos abandonado e com isso ainda poderíamos zarpar. As pequenas tropas logo após esse incidente haviam sido controladas e estavam sob vigilância no acampamento da Força Italiana. Até quando as revoltas continuariam? Até quando continuaríamos a ter sorte? Embarcaríamos dentro de quatro horas, mais exatamente ao meio-dia, e tinha muito para se fazer. Avignon, Terra Nova ou sei lá qual o nome tinha agora, já estava bem próxima de nós. Bastaria atravessarmos o mar. Esse mar que nos causa tanto medo com seu verde conquistador, com suas ondas chamativas e o frescor de sua brisa. Ele às vezes podia ser bravo, assim diziam os navegadores, porém seu fascínio era grandioso e até suplicante. Doutor Benito refletira muito em pequenos pedaços de papel sobre a mesa à hora do jantar e mormente esquecidos, achei por direito pegá-los . E lendo, pensei logo na risível filosofia que me foi dada no colégio; tão sôfrego e pedante era que de nada me valeu. Os ministros do povo fazem o que bem querem e nada mais. Tudo para si. A população que seja dócil para com eles e aceitem tudo de boca fechada. É, os rabiscos do Doutor Benito estavam corretíssimos.
- Ah! Ligúria que meus pés banham,
Doces tormentas injustiçadas.
Faias, abetos, fontes de vida
presas ao solo desvirginado.
Tua areia branca, Ligúria-
Memória selvagem e livre.
Tua água verde-louro embevece
olhos que te mirem na enseada.
Ligúria, meu último momento
incrustado em teu solo
que divide a minha alma.
Amanhã, longe de ti estarei,
porém ver a mim qual dirás,
que o relento nos cerca.
Berço de guerras serás
até que homens e homens
desistindo, teu canto ouvirás,
no marulhar das ondas,
no repousar do mar,
decapitados, mutilados,
aprenderão a te amar.
João e Celitto venderam tudo que não ocuparíamos mais e o Doutor Benito já havia comprado as passagens. As mulheres já tinham encaixotado tudo que deveria viajar desse modo, e assim nos restava dar um último suspiro e dizer adeus à nossa terra que ficava para trás na eminência de ser destruída. O sol quente naquele início de tarde e nem mesmo os rabiscos do Doutor Benito conseguiram suavizar o amargo sabor da despedida. As mulheres choravam e Atti ainda mais por saber-se sem mãe. Quem haveria uidado dos funerais dela? Quem teria chorado por ela? Quanta tristeza havia na partida? Assim seria para sempre? Tinham a certeza de que não deixavam ninguém para trás e isso aliviava um pouco o sofrimento. O Mar Ligúrico os recebia de braços abertos e Cia orava para que tudo corresse bem na viagem. A proteção divina, dizia ela, era o maior conforto das almas.

Capítulo IV


A batata está pronta para ser colhida, e chega mais uma diligência no povoado da Gorízia que não se cansa de receber bem os que por ali passam. Dessa vez, do seu interior não sai uma pedra preciosa, mas sim um jovem outor que acabara os seus estudos na França. Sem destino resolvera tentar sua sorte no norte da Itália, já que sabia ser este um país pobre e necessitado de toda ajuda possível. Não demorou muito tempo para fazer amizade com o pessoal e foi conquistando seu espaço de Doutor bem informado e zeloso para com sua comunidade. Já há uma semana e com a festança que vinha sendo preparada para o início da colheita, não lhe faltara convite por parte das raparigas do vilarejo.
- Como vai Doutor Benito? – Todos o cumprimentavam por Doutor, e, às vezes em seu interior ele mesmo ria de si, pois tão jovem e já com tão alto predicado.
- Resolvera ir ao baile que marcava para o outro dia o trabalho árduo, às vezes que trazia resultados horríveis nas costas dos catadores de batatas. O baile era regado com muito vinho e queijo e o puro bacalhau acompanhado de menestra, que era servido até que houtesse um último convidado. As raparigas ficavam à volta dos músicos esperando que alguém as convidassem para dançar. Doutor Benito, um pouco tímido para os assuntos do coração não teve coragem aquela noite, mas acabou nos braços de uma linda mulher que o envolveu com seu perfume suave, seu olhar provocante e suas formas arredondadas e roliças.
- Não me acanhe por favor, linda donzela! – Tentava explicar-se sem solução.
- Qual é o nome de tão lindo homem, com quem de repente me deparo?
- Desculpe-me, Senhorita. Estou de saída agora mesmo.
- Leve-me com você. Passaremos uma noite linda. E, não precisarei acordar tão cedo amanhã; não do teu lado.
- Contenha-se, por favor. O que falarão os outros ao nos ver assim tão íntimos?
- Não se preocupe com o que dirão os outros, mas sim com o que poderemos fazer.
- A noite havia sido tremenda para ambos, mas a contar daquele dia, Benito não mais teria sossego em sua vida. O sol raiara diferente naquela manhã. Um vermelho tão denso que parecia prenúncio para a morte. Ele não estava sentindo-se bem e por isso resolvera acompanhar de perto o início da colheita. O arado ia sulcando a terra, deixando as batatas à mostra e os catadores iam atrás apanhando e colocando em pequenos balaios. A terra era fértil e mostrava-se produtiva. Após essa cata, seriam plantados aveia, arroz, milho ou trigo. A entressafra era muito importante para os agricultores. Ajudavam a ganhar umas liras a mais. Doutor Benito olhava entusiasmado para toda àquela gente que não cansava de ficar curvada sobre as pequenas bolas que se espalhavam pelas fileiras demarcadas.
- Não quer vir ajudar, Doutor? – Perguntou Ginna Busik, que o fez lembrar da noite passada.
- Não, obrigado. Acho que não consigo ficar agachado por muito tempo. – explicou-se meio acabrunhado.
- Venha aqui que quero lhe apresentar meu marido. – Ela o chamou apontando para o outro homem que estava agachado duas fileiras abaixo.
- Laetto, este é o Doutor Benito, o novo médico que chegou na Gorízia há pouco tempo.
- Como vai Doutor? – Apresentou-se apenas dirigindo um olhar chamuscante para o lado do outro.
- Há quanto tempo vocês são casados? – Perguntou curioso.
- Há dois anos Doutor,e, até agora não temos nenhum filho, o Senhor acredita?
- Ah! Mas logo, logo vocês o terão!
- É o que espero. –Ginna respondeu olhando bem no fundo dos olhos do Doutor, que sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha de fio a pavio.
-Foi um prazer para mim conhece-los. Apareçam em minha casa para conversarmos. Até mais então.
- Até logo, Doutor. – Respondeu Laetto ainda desferindo punhaladas pelos olhos.
-A caminho de sua casa foi pensando no que se tinha metido e não gostava do que pressentia. Às vezes, amigos lhe contaram das ciladas que haviam lhes armado mulheres do tipo de Ginna. Isso não lhe dava medo. Tinha medo do medo de ter medo do que poderia vir a acontecer e era só isso. Ele tinha consigo que Deus às vezes fazia certas coisas para beneficiar a outrem ou deixar mais felizes àqueles que não gozaram tal felicidade. Se Laetto não podia gerar filhos, e Deus o tomou como instrumento para tal, não iria ficar encucado com tal coisa. Nem mesmo sabia se Ginna fizera aquilo por maldade. Nem mesmo poderia ter ficado grávida. Estava deixando a sua mente dominar. Não podia permitir que idéias tão mesquinhas lhe varressem o espírito. Por que ela não lhe dissera que era casada?
- Doutor Benito, acuda-me por favor. Meu filho! – Uma Senhora havia interrompido seus pensamentos.
- O que aconteceu?
- Meu filhinho está vomitando demais, só o Senhor pode me ajudar! Por favor, Doutor!
- Claro. Claro. Vamos lá. Só vamos passar em minha casa para pegar alguns remédios que poderão vir a ajudar, e meu material para os respectivos exames.
- Deus lhe abençoe, Doutor. Deus lhe abençoe.

Capítulo V

O pequeno menino estava todo lambuzado de uma gosma verde que provocava náusea aos estômagos mais fracos. Era naquela casa que poderíamos analisar a situação financeira da maioria naquela humilde cidadela. Todos os bens que possuíam se resumiam a caixotes espalhados pela casa. O marido de Dona Ciappo estava adoentado e com isso toda responsabilidade recaia sobre ela. A vida lhe era muito dura. Mediquei e em seguida dei algumas explicações e alguns chás para ajudar na recuperação daquela pobre alma. Com apenas um mês e já sentindo todo o peso da vida. Ele escaparia com toda certeza e ajudado pelo bom Deus.
- Ah! Como são lindas as ondas! O mar com esse ir e vir constante dá-nos a certeza de que o embalar de uma mãe que acalenta seu filho é o gesto mais belo e puro da face da Terra. Quando agita-se, deve ser perdoada, porque sempre há um motivo para as tormentas. – João aproximou-se falando calmamente. – Nunca pensei que fosse tão gostoso percorrer caminhos cobetos por água e banhados por um céu tão lindo como esse que vejo agora.
- É João! É bom saber que a paz reina à nossa volta. – Com uma expressão triste, Doutor Benito virou-se para o rapaz que era a representação em pessoa, da alegria de um ser humano.
- Onde estão os outros?
- Estão deitados em seus camarotes descansando. A viagem parece afetar em pouco tempo quem nunca trilhou caminho como esse. O Doutor não é afetado, estou certo?
- Agora estou ficando velho. Não mais sou aquele jovem sonhador que chegou a esta terra anos atrás.
-Ainda é muito jovem, Senhor.
- Bondade sua... mas mesmo os campos mais belos são despojados de suas belezas. Envelhecer dá medo... ainda mais quando não possuímos uma família para nos amparar em momentos difíceis! É, o sentido da vida vai se tornando compacto com o passar do tempo. Assim como essas ondas se debatem contra o casco do navio, também eu já me debati com a vida durante longo e longos anos. Realmente dá medo em pensar estar só. Veja só aquela gaivota voando sozinha lá no horizonte. Aposto que ela já percorreu os mais diferentes caminhos e mesmo assim não se cansa de continuar o vôo. Outras gaivotas perderam seu tempo à beira de mares poluídos, querendo apenas conquistar o seu peixe do dia-a-dia. Eu não sou um acomodado. Mesmo às vezes sentindo-me só, é nesta solidão que vejo companheiros do passado, do presente e de um possível futuro. Mesmo o Sol, com seu dormir demorado, antes de dar lugar para a escuridão ou para a sua amada Lua, dá-nos a certeza de que sempre retornará em algum lugar. Também creio que mesmo antes de minha partida estarei retornando para esse lugar que sempre amei.
- Não pensei que pudesse dizer tantas coisas lindas, Doutor Benito.
- Nem eu, meu filho. Mas a necessidade às vezes se faz suprema e devemos nos virar com o que podemos.
- Veja Doutor, parece fumaça saindo daquele compartimento!
- É verdade! Fogo...fogo...- O Doutor desesperado começou a gritar e imediatamente formou-se a maior agitação no tombadilho. Homens correndo em busca de água para apagar o fogo que estava bem vivo.
- Mulheres para a cabine do Capitão! Rápido, vamos! – O Capitão gritava enquanto o fogo ia se apagando com os baldes de água. Não demorou muito para que folgasse um pouco e o acontecimento passou a ser discutido. A culpa não devia ter sido e ninguém, já que lampiões estavam por todo o navio e a queda de um, no mínimo, poderia ter provocado o incêndio. Porém não custava ficar de olho em algum passageiro suspeito. Ninguém havia se machucado. A lei e a ordem haviam sido restabelecidas e o navio continuava seu caminho. Anna e Gusto, realmente apaixonados, circulavam de mãos dadas o tempo todo. Atti e Senhor Ciappo continuavam seus trabalhos com linha, enquanto Caillo, Doutor Benito e os demais passageiros nãos e cansavam de observar as curiosidades que apareciam.
A viagem continuou calma e com isso Doutor Benito voltou às lembranças de tempos que haviam sido preparados por aquele oceano imenso. O parto havia sido difícil. Ginna Busik, mulher forte, quase não resistira à operação. Não conseguia dar à luz e foi necessária um incisão para retirar o bebê. Pela primeira vea Doutor Benito colocava no mundo uma criatura tão bela. Um lindo menino com seus três quilos e meio, cabelos avermelhados, quase loiros, olhos de um azul infinito que cativava qualquer ser humano dotado de amor. O pai todo feliz agradecia incessantemente, sem saber o que lhe guardava a desventura dos homens.
- O que o Senhor está pensando Doutor Benito?- mais uma vez João se aproximara sem ser percebido, porém deste vez percebera um misto de medo e preocupação no semblante do Doutor.
- Nada de importante. Estava apenas relembrando algumas coisas que me aconteceram...
- Não gostaria de falar sobre elas?
- No momento não... Você está gostando da viagem?
- Já estou me sentindo exausto! Qundo avistaremos o Estreito de Gibraltar?
- Logo, logo... Creio que mais meio dia de viagem e estaremos adentrando o Oceano Atlântico em direção às Terras Novas.
- Tomara que não demore. Parece que a ração já está quase terminando...
- Calma, o Capitão sabe o que faz!
- Realmente devo estar me preocupando sem necessidade.
- Guarde toda essa expectativa para quando desembarcarmos na Terra Prometida.
- Está bem, está bem. Não se fala mais nisso.
- Assim é bem melhor.
- Vamos descer para o camarote, Doutor?
- Vá descendo que eu já vou.
- Estaremos esperando para o jantar. Não se demore.