Saturday, November 01, 2003

A traça do homem de Java

A mão estava pendida sobre as vestes brancas e a traça resolvera penetrar o anular direito, justo onde pusera sua preciosa aliança. As dobras da túnica receberam o jato de sangue finíssimo. O inseto prateado perfurara ao som de “Like Humans Do” e descobrira uns espaços brancos, uns espaços quase amarelados, gerais.
“Justo agora que encontrei um tema para debate”.- pensara Aton, um especialista em vida privada, apaixonado pela sociedade e sua feudalidade; a revolução levaria sua assinatura.
A traça continuara em posição paralela, num sentido dinâmico, constituindo a base da crítica histórica, desrespeitando a própria mecânica celeste. Para alguns, o homem discerne, julga e reflete; a traça não, a traça nunca chegaria, nem mesmo subdividindo-se. Novos espaços em branco para julgamento. Aonde iria essa traça sem um roteiro. Até quando teria lapsos em sua curta memória.
Um búfalo esquecido no tempo pré-histórico sentiu-se acentuadamente moderno quando teve seu lombar anterior devorado; a lepisma carnívora, acelerada e desumana.
“Meu projeto de reconstituição anatômica bem poderia organizar-se na rupestre tentativa estética e mágica”.- Neand, superior em sua área de estudos, sussurrara aos ouvidos de Aton. Dois homens das Ciências num perfeito gozo de suas reflexões.
O luminoso inseto de pernas aceleradas, principal raça das bibliotecas antigas, devorador dos tempos que se agitam através dos céus, sentia-se enlevado. Ao escutar tanta falácia sentia-se com muito mais valor e dela se aproveitava. Conforme o próprio Aton discursara “As pernas de uma fêmea são objetos preciosos”, no antigo reside a cadeira de repouso; no futuro reside, sobretudo uma zona de contrastes.
A figueira tudo ouvia e segredava aos passarinhos, aos ventos, às nuvens e à chuva. Em suas grandes raízes estavam sentados Aton e Neand. Era um prazer. Ela, tão secular, ouvia como ninguém jamais ouvira.
- Então, Neand, como estava a dizer, o Egito foi um presente do Nilo e suas enchentes fertilizantes.
- Com certeza. Um rio nascido de fios cerebrais que se dirigem para o Vale dos Reis.
Vale dos Reis. Lá estava ela, a magnânima prateada, sob o pórtico do maravilhoso templo rupestre a observar os quatro reis que dormem. Estariam dormindo e manter-se-iam assim não atravessasse a camada mais baixa da população egípcia e caísse aos pés do Escriba sentado. A pupila de cristal seduzira o ofício da traça. Ela mesma estava a escrever o seu caminho e acabara ali naqueles pés enormes. Sentira-se atraída pelo olhar expressivo. Seus olhos de traça nunca visualizaram tão belas pupilas. Nem as mulheres conhecidas tinham em seus adornos oculares tão belas pupilas. Esquecia-se da simetria existente entre a morte e a vida. Esquecia-se da caçada de pássaros às margens do Nilo. Esquecia-se das visagens ao topo das pirâmides. Ah, que admirável altura. Sentira ali a importância de seu coração. Teria ela coração. Já lera tantas obras e absorvera o coração dos humanos, mas o que seria um coração. Quem sabe a pedra de Roseta pudesse definir para ela. O êxodo era premente. Precisaria de mais encontros filosóficos. Cavou um espaço para enxergar e ouvir melhor o que estava sendo dito. Como chegara tão distante. Agora visualizava o sol e poderia observar bem.
- Glória a ti, Senhor da Verdade e da Justiça! Glória a ti, Grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça! A ti vim, meu Senhor, e a ti me apresento para contemplar as tuas perfeições. Porque te conheço, conheço o teu nome e os nomes das quarenta e duas divindades que estão contigo na sala da Verdade e da Justiça, vivendo dos despojos dos pecadores e fartando-se do seu sangue.
- Quem são essas divindades, Aton?
- Duplo espírito Senhor da Verdade e da Justiça é o teu nome. Em verdade eu conheço-vos, senhores da Verdade e da Justiça; trouxe-vos a verdade e destruí, por vós, a mentira. Não cometi qualquer fraude contra os homens; não atormentei as viúvas; não menti em tribunal; não sei o que é a má fé; nada fiz de proibido; não obriguei o capataz de trabalhadores a fazer diariamente mais do que o trabalho devido; não fui negligente; não estive ocioso; nada fiz de abominável aos deuses; não prejudiquei o escravo perante o seu senhor; não fiz padecer fome; não fiz chorar; não matei; não ordenei morte à traição; não defraudei ninguém; não tirei os pães do templo; não subtrai as oferendas dos deuses; não roubei nem as provisões nem as ligaduras dos mortos; não auferi lucros fraudulentos; não alterei as medidas dos cereais; não usurpei terras; não tive ganhos ilegítimos por meio dos pesos do prato da balança; não tirei leite da boca dos meninos; não cacei com rede as aves divinas; não pesquei os peixes sagrados nos seus tanques; não cortei a água na sua passagem; não apaguei o fogo sagrado na sua hora; não violei o divino céu nas suas oferendas escolhidas; não escorracei os bois das propriedades divinas; não afastei qualquer deus ao passar. Sou puro! Sou puro! Sou puro! – Aton recitava os provérbios sem ouvir a pergunta de Neand.
- Quem são essas divindades?-inquiria calmamente Neand.
- Ah, caríssimo amigo. Os deuses parecem me iluminar nessa tarde gostosa. Os mortos recitavam orações assim. Não conheço esses deuses. Apenas os escuto. São vozes que chegam aos meus ouvidos com o vento. Você nunca escutou nada?
- Não. Não sou tão puro! Sou, indigestamente, humano.
- Deixa de bobagem, Neand. Todos nós podemos ouvir. É preciso treino. É preciso escutar-se a si mesmo. Um dia você conseguirá.
O impacto fora grande. Ouvidos sensíveis estavam a ouvir. A fome estivera em seu limite. Não se dera conta quando perfurara a cabeça do Touro Alado de Khorsabad e já estava a sugar o ventre sagrado da Deusa da Fertilidade da Babilônia. Seu eixo estava inclinado. Quem sabe fosse vingança de Nergal, senhor do país de onde não se volta. Contudo, por estar em terreno sagrado, retirar-se-ia para o mar; lá, talvez, conseguiria enganar Nergal que agora estava a cuidar das grandes obras santuárias. Sua fuga seria severamente reprimida caso ele viesse a descobrir.
Enfim, a criação do mundo. Enfim, como ela mesma teria nascido. Enfim, precisava consultar o Profeta. Enfim, a água. Originalidade.
A mulher e suas pernas, suas serpentes, sua religiosidade e sua arte. A Mulher de Azul. A mulher-libélula. A mulher e sua tristeza. Minerva. Sacerdotisas. Dama de Elche. Mulher-moeda. Teodora. Devorarei todas. Esparramo-me. A minha luz divide-se. Agora somos seis traças. Seis traças a devorar a vida do camponês medieval e sua lavoura de pergaminhos; as rotas comerciais e seus papéis estocados; os canais de Veneza e os livros de Marco Pólo; os cavalos da fachada da igreja de São marcos e o antigo palácio dos Doges; o selo com efígie de Eduardo, o confessor - anglovmba lei sigillvm meadvvard; o monge copista; o interior da catedral de Chartres e... Ut queant laxis resonare fibris mira gestorum famuli tuorum solve polluti labii reatum. Minha língua e meus dentes estão manchados. Nós seis temos as línguas e os dentes manchados.
Uma enorme cara de palhaço está desenhada. Olhos vivazes. Boca enorme. Cara que não ousa se apresentar ao que é moderno. Cara que não ousa questionar Colombo.
Incunábulos. Como adoraria devorá-los. Faria um convite às traças depois de finalizar o passeio. Agora estava encantada com os provérbios; com a longa barba de Gutenberg; com a Pietà, com A Sibila de Delfos e Moisés, de Miguel Ângelo. Modernidade. Ela seria moderna agora. To be or not to be. Reformas, caríssimos Neand e Aton. Bigode e barbicha a Richilieu; perucas pomposas a Luis XV; pensamento a Rousseau; cultura e ambição a Catarina II; habitar a estação orbital em pleno espaço e revolução meus amigos. Revolução. Cansaço.
O vazio poroso da pedra. Uma nuvem branca. Os restos do Palácio de Cnossos. Os arqueiros persas. Não. Sou agora apenas massa disforme no colorido dos tijolos esmaltados onde séculos após séculos desfilam soldados persas em monótona procissão. E eu aqui vendo tudo.





Wednesday, October 29, 2003

Um certo tapete marroquino...

Entrevista com
Eduardo Aparecido Ambrozeto

Ana Maria de Moraes Souza
1º Semestre de Letras
Faculdade de Ciências e Letras de Ituverava


EDUARDO APARECIDO AMBROZETO nasceu em Nuporanga, aos 04 de novembro de 1966, mas aos 10 anos mudou-se para São Joaquim da Barra, onde continuou seus estudos ginasiais e onde ainda vive, trabalha e planta sua poesia pelas esquinas, praças, ruas e campos desta cidade.
Formado em Letras em 1989 pela Faculdade Barão de Mauá, adquiriu larga experiência como professor I, ligado ao ensino básico. É Professor Efetivo do Estado de São Paulo, tendo sido concursado em Português em 1993. Atualmente é Assistente Técnico-Pedagógico de Língua Portuguesa na Diretoria de Ensino – Região de São Joaquim da Barra.
O tímido Eduardo (na verdade, como diria Clarice Lispector, ele é um tímido muito ousado) participa ativamente de quantos eventos culturais aconteçam em nossa cidade. Por exemplo, ele tem promovido a vinda de vários escritores a nossa cidade, os quais aqui vêm participar de debates, palestras e encontros com os alunos e o público leitor em geral. Entre esses escritores, citamos Luís Galdino, Wagner Costa, Marcelo Cunha e Elza Salouti. Nosso poeta promove inclusive um vasto intercâmbio com grupos teatrais, os quais periodicamente se apresentam às platéias escolares. Ambrozeto, ainda, é assíduo colaborador da imprensa regional (e co-organizador de várias antologias literárias que continuamente são publicadas em nossa cidade.
No plano pessoal, por sua meiguice, simplicidade, simpatia e sincera alegria, nosso poeta é figura querida e admirada por todos aqueles que privam de sua amizade.
Eduardo Aparecido Ambrozeto publicou seu primeiro livro de poemas, Amar: Verbo e Carne, em 1985. Olhar de Primavera, seu segundo livro, veio a lume em 1994 e já está na 2ª edição e Gruta, em 1999. Cumpre-nos salientar que os livros contaram com o decisivo apoio moral e financeiro dos senhores Sebastião Fernandes Filho , José Mauro Ambrozeto, primos de Eduardo e do tio querido, Francisco Ambrozeto. O poeta participou ainda das antologias Rabiscando Sentimentos (1987), Avulsos (1994), Mixto (1996) e Pescadores de Palavras (1996). Estas antologias, justiça seja feita, são geralmente custeadas pelos próprios escritores participantes e representam uma atitude pioneira, louvável e perfeitamente válida de divulgação do trabalho poético, sejam contos, crônicas ou poemas, de muitos escritores joaquinenses como Flávio Pereira, João César Prachedes, Eduardo Aparecido Ambrozeto e outros, aqui presentes ou não. Registro publicamente o fato para que as autoridades, a população e os colegas presentes não apenas tomem conhecimento desses livros, mas que efetivamente se empenhem no sentido de dotar nossa cidade de um espaço digno para abrigar tantas e tão heterogêneas manifestações culturais e artísticas, das quais a ALAJ pretende ser um celeiro e ao mesmo tempo um espelho. São Joaquim da Barra não pode mais continuar a ter apenas manifestações esporádicas e logo abortadas, como o foram o Madrigal, o Grupo de Teatro Luz e Sombra, o Núcleo de Cultura e Arte e tantos outros. Em meu próprio nome, em nome da ALAJ e de meus colegas artistas, agradecemos publicamente o apoio que temos recebido da Prefeitura Municipal, na pessoa do DD Prefeito Dr. Jorge Antônio Barbosa Sandrin, e colocamo-nos a sua disposição para estudarmos um projeto cultural em parceria e invertermos o deplorável estado da arte e da cultura em nossa cidade.
A poesia de Eduardo Ambrozeto é essencialmente lírica. O que é a poesia lírica? O que é ser um poeta lírico? O que é lirismo? Lírico, lírica, lirismo, derivam de lira, instrumento musical que, na Grécia Antiga, acompanhava a declamação ou a leitura de poesias. O poeta lírico é aquele que, escrevendo poemas em versos livres e brancos, sonetos, odes, elegias, baladas e outros subgêneros poéticos, procura extravasar seus sentimentos, emoções, pensamentos e lembranças, geralmente sentidos em profundidade por seu EU poético. Assim, o gênero lírico se caracteriza sobretudo pela expressão de idéias ou sentimentos pessoais, os quais se originam das muitas experiências e vivências do poeta, como o amor, a solidão, a amizade, a perda de alguém amado, a natureza. O gênero lírico, por seu caráter pessoal e confessional, está presente em todas as literaturas, desde os gregos e chineses clássicos até a poesia medieval, a renascentista, a romântica, a moderna. Há uma extensa tradição, pois, pesando sobre os ombros de nosso Eduardo. De qualquer forma, porém, é esta tradição que alimenta e valida a nova e atualíssima produção poética, de Eduardo sobretudo, que em vários momentos de sua poesia faz jus aos grandes mestres do passado. Assim, sua temática engloba tanto os poemas de amor, mostrando-nos a paixão, o sentimento de perda ou de realização amorosas, o mal de amar (como em Camões), quanto temas como a natureza, a amizade, a ciranda urbana. Nosso poeta, ainda, questiona-se permanentemente sobre a aventura da poesia e sobre seu mistério, revelando aguda percepção metalingüística. Assim, para além do mero exercício retórico, ou para além da frágil composição de versinhos apaixonados, iludidos ou desiludidos, como vemos constantemente em tantos poetas oportunistas, carentes de estudo e conhecimento da verdadeira poesia e da verdadeira literatura, reconhecemos em Eduardo um poeta preocupado com a palavra, com o artifício da palavra, com a lavratura da palavra, com o que está além da palavra. Porque, é sempre oportuno reafirmarmos, a palavra é o meio e o fim de toda Literatura.
O poeta tem fortes sentimentos pela Itália, terra natal dos avós:
“Na América onde chegamos
Não encontramos nem palha nem feno
Dormíamos no chão, ao sereno
Como bestas irracionais
E com o engenho de nossos italianos
E o esforço de nossos paisanos
Com o passar dos anos
Construímos países e arraiais.”

Desde 1810, um milhão e seiscentos mil italianos deixaram a bela Itália de Michelângelo, a piccola Itália de tantos outros e aqui chegaram para construir o Brasil.
Hoje, são, pelo menos, 25 milhões de “oriundi”, que trazem a herança cultural e afetiva italiana no sangue e nos cromossomos. Entre eles, Eduardo Aparecido Ambrozeto, que redescobrindo as virtudes e as paixões da mãe-pátria longínqua, firma-se no nosso cenário artístico-literário, expressando o mundo, a vida e o amor em versos e prosa.
Eduardo é também autor de poemas infantis que, introduzidos em nossas escolas, têm proporcionado encontros poéticos com a fantasia - momentos privilegiados nos quais as crianças são convidadas a manipular a estrutura poética e a descobrir ritmos, rimas, repetições e ecos semânticos.
Eduardo acredita no lugar de destaque que a imaginação deve ter no processo educacional, acredita na criatividade e no poder de liberação que a palavra pode ter; assim, se faz um paladino do lema: "Todos os usos da palavra a todos", criando entre outras coisas um instrumental para a educação lingüística das crianças.
Armando símbolos, tecendo caminhos imaginários sobre as páginas, Eduardo oferece aos alunos uma inusitada sensação de intimidade com as palavras e um caloroso enredamento.
A fantasia e a sensibilidade, presentes no mundo infantil, caracterizam a sua poesia.
O que aconteceria se uma barata kafkiana invadisse a nossa imaginação?
E se um estilingue atirasse flores em pássaros aflitos!
Chapeuzinho Vermelho bate à porta de Gepetto para pedir abrigo e descobre que o lobo era uma antiga fantasia que Pinochio vestia quando seu nariz crescia.
Estas são algumas amostras da imaginação, da fantasia e da criatividade de Eduardo.
Passamos agora à apresentação de alguns poemas de Eduardo Ambrozeto, com os quais pretendemos ilustrar o exposto até aqui.

1- Pai Nosso


Pai,
Senhor de todas as maravilhas existentes,
Nosso orientador e guia nas tristezas e alegrias,
Que estais nos Céus a observar atos e pensamentos,
Santificado seja, para toda a eternidade,
Vosso nome que reina absoluto em nossos corações.
Venha a nós o vosso reino que também é nosso
E seja feita a tua vontade mais sagrada
Assim na Terra, que possui tantos recantos,
Como no Céu que nos mostra espetáculos ímpares.
O Pão, alimento de corpos e almas,
Nosso , a cada dia, sacie os nossos desejos,
Nos dai hoje e para toda a Eternidade.
Perdoai desses seres pequeninos, comparados a Ti,
As ofensas mais presentes e remotas,
Assim como nós perdoamos a todos os infelizes
Que têm nos ofendido profundamente
E não nos deixeis cair dos Altos
Em tentações aflitas e insuportáveis,
Mas livrai-nos de todos os males
Que conturbam os nossos seres,
Senhor,
Amém.



2- Palhaço

Pendurado na parede,
procurando o picadeiro,
faz-me rir com suas graças,
dias, meses, o ano inteiro.

Seu cabelo cor de palha,
separado em dois montinhos
parece um ótimo lugar
para pássaros fazerem ninhos.

Sua roupa e seu nariz,
tão vermelhos, tão bonitos:
na roupa , flores azuis;
no nariz, um branco lírio.

O pescoço e os tornozelos,
circundam rendas brancas.
Abre a boca, diz palavras
que alegram às crianças.

Assim que eu crescer
e na parede alcançá-lo,
vou devolvê-lo ao circo
para sempre alegrá-lo.






3-Fases


Quatro cartas
Quatro selos
Uma bandeira
Uma distância
Tão amigos
Tão contentes
Um adulto
Tanta infância

Quatro cantos
Quatro encantos
Uma vida
Uma viagem
Tão próximos
Tão distantes
Um adulto
Tanta infância

Quatro estrelas
Quatro mapas
Uma data
Uma palavra
Tão divinos
Tão meninos
Um adulto
Tanta infância





4- Tapete Marroquino

I
Secos .
Os pés da Grande Mesa estão secos.
Também estão secos os pés das cadeiras que se acomodam à sombra, estanques, da mesma Grande Mesa.
São pés secos, prolongados; os pés pendidos, retorcidos, enviesados nas oito cadeiras - a visita chegará em hora inoportuna - dispostas perfeitamente, bem como toda iguaria seca posta, naquela Grande Mesa.
São uvas secas, destituídas da água que nos obriga a viver no deserto - o fogo queimará cada milímetro da total secura. São secas as palavras pronunciadas pelos lábios secos. A seca palavra que impele cada cadeira contra o seco assoalho de madeira verde. A importância é seca. Flores secas ornam lágrimas secas da vela cuja parafina não escorre e o pavio não queima. Um defunto repousa seco na outra sala e chora a seca verdade da vida.
Um cacto passeia pelo charco.
As roldanas do velho verão instigam o inverno molhado. A alma está seca. O espinho para o cacto é o apêndice para o camelo. Na aridez do cacto a intempérie do charco.
Uma toalha ressequida repousa e tem pesadelos sobre a mesa - o vinho seco derramado nas tramas de sua vida seca.

II

Um lobo observa do outro lado da varanda. Seu olhar e ganido fazem com que desvie a atenção. O lobo está entre duas rosas: uma, vermelha; outra, está amarela.
Abelhas driblam as telhas e colhem o néctar na cobertura florida. Um botão ainda não se desenvolveu e mostra pequenas pétalas e sépalas.
Apenas um botão.
Nuvens escuras engolem o céu e debulham lágrimas secas sobre a cidade.
Olhos pousam numa rolinha que arisca voa rasante em direção ao cacto. Um vento louco sopra sobre cabeças. Um estupor toma conta de almas.
Viajo entre as abelhas e não encontro meu zangão.

III

Mijo na flor amarela, eternizada no tapete de retalhos que pertenceram a outrem.
A flor amarela absorve o mijo que escorre de um membro senil.
A descarga leva a flor. Ainda, minha inconsciência me faz aflorar.
No mesmo tapete vejo margaridas amarelas que desviam-se do jato com suas pétalas rebatedoras.




IV

Um saco exposto balança pendurado no arame farpado.
As farpas do arame dilaceram o saco que aceita passivamente a intransigência entre o não poder se desprender das amarras do arame e o sobrevoar de uma borboleta fertilizada. O mesmo vento agita distraidamente a taboa inerte no centro do lago. Inerte, a lua se demora na noite, opaca pela vontade de nós dois.
O vento já não é mais suave. O balanço agora é atordoado. A dor do vento é insuportável. Subtrai-se um acorde da dor e o vento permanece indiferente.
Os acordes chegam do tapete morno. A poça amarela é mais verdadeira que o saco que balança.
Um homem com varas de pescar passa agitando o seu podão, e, com um leve movimento ceifa a flor espumante.

V

Dois sujeitos ocultos pela bruma da noite, negro véu lanceolado entre a cerca de arame e os pés secos da mesa, passeiam pela lua visualisada entre o reflexo freudiano do espelho e o horizonte demarcado pela sua silhueta.
Um e outro se procuram a cavalgar o Alazão de São Jorge e a manusear sua espada tão certeiramente quanto o fogo cuspido pelas ventas do dragão matutino.
A lua matreira urina na espada os cristais de suas crateras escravizadas pela poeira cósmica.
As bordas do tapete se enrolam em pensamentos enquanto um gozo frenético exala no ar o cheiro da primeira cópula.
Estamos grávidos de nossa linhagem.

5- Tempestade e Ímpeto

Se qualquer dia desses
em minha vida amorosa
o amor se fizer presente
no dia-a-dia de nossas vidas
entre o achar da areia na praia
e o perder-se nas ondas
estarei sempre onde você quiser:
na espuma branca dos rochedos
na silhueta do seu corpo perfeito
na fogueira que arde as cinzas
no trotear de cavalos alados
na tua face rósea e risonha
na tocha que ilumina secretos caminhos
nos teus passos em negra areia
no teu mergulho mais desajeitado
nas rodas que te movimentam
na liberdade dos seus deslizes
nas brincadeiras mais singelas
no vento que esculpe você em meu pensamento
como memória permanente em mim
no seu sussurro mais inaudível
como minha metade a me orientar
através das luas que passam
( e todo mundo sabe que o segredo
mora dentro de mim )
Não é fácil deixar de gritar
aos quatro cantos da noite
todo amor que me contagia
Palavras nada diriam do seu olhar
quando minha vida mudou
por causa desse amor que une
dois seres através de íris-imagem
Seu jeito doce de filme em 38 mm
quadro-a-quadro em minha existência
vistos através dos teus lábios sedutores
Carnudos ao convite de um beijo
que dure um minuto mais a eternidade
enroscados nossos espíritos
tais qual abelha no pólen
e moinho ao vento
Nosso amor é assim
como todo amor deve ser
E hoje, nesse dia verde-mar
gostaria de ser transparente
e dizer o que é comum a todos nós
da forma mais simples
Eu te amo
Sejamos namorados a vida inteira.