Monday, July 06, 2009















E eu queria saber mimar a pena adormecida! Que pena! Ainda não recebi lição de pena. A pena já não faz parte da vida.

Ter pena: ter piedade, ter compaixão, ter dó. A origem etimológica da palavra "pena", do latim poena, significa castigo, suplício, mas aqui já não é isso. Para mim, aqui, ao olhar a imagem, lembra leveza.

Thursday, November 29, 2007

A Porca

Sunday, April 25, 2004

Brejo Amarelo

Capítulo I

Descendo os montes cobertos de faias, abetos, pinheiros selvagens, frívolas e algumas espécies florais, vinham em direção à pequena Gorízia, dois homens altos, brancos e com vestimentas para o trabalho no campo. A plantação de batata ficava nas pequenas enconstas ao sopé das montanhas e era o meio de subsistência de quase toda a população do vilarejo. João Busik, o mais novo, contando com seus dezoito anos, de uma virilidade estupenda, olhos azuis, cabelos avermelhados pelo sol, de uma tez rosada que fazia inveja à mais bela rapariga do povoado. Augusto Bushin, um ano mais velho que o seu colega, olhos verdes, pele amorenada, cabelo castanho-claro e com uma leve queda para os vícios que se impõem à mocidade. Vinham chutando algo parecido com uma bola e cantando a mais nova canção que era executada nas festas que por ali aconteciam. Ao chegarem ao vilarejo, que contava com um pouco mais de quinhentos habitantes, decididos a tomar um trago na cantina da Mama Antonucci, vem correndo em direção a eles uma bela rapariga que atendia por nome de Atti, gritando para que se escondessem imediatamente, sem saber que uma bala voava para o seu braço direito, indo acertar em cheio no cotovelo bem delineado. O sangue jorrava e já quese desfalecida é amparada por quatro braços fortes que a levam bem depressa para um pequeno beco na mesma rua em que estavam.
- Atti, conte-nos o que está acontecendo! Por favor, fale depressa!
- Gusto, não vês que ela está mal, devemos procurar um médico imediatamente.Rasgue um pedaço de pano da combinação dela para estancarmos a hemorragia; rápido homem.- Atti estava suando e mesmo assim tentava dizer-lhes algo com muita dificuldade.
- João... Gusto... fugir para longe... guerra se aproxima da Gorízia.- Começou a tossir e desmaiou deixando-os ainda mais preocupados.
- E agora João, para onde a levaremos?
- Vamos ao Doutor Benito quem mora perto. Lá poderemos conversar com mais calma.
O dia já estava terminando e anoitecia rapidamente. Os dois jovens enveredaram-se com o corpo pelas ruas da vila se esguelhando para não serem percebidos, já que as forças de defesa dos montes estavam convocando todos pelas ruas. Eles deveriam chegar rapidamente ao médico, já que disto dependia uma vida. A casa estava rodeada de novos recrutas com seus bornais munidos, velhas cartucheiras e outras munições, além dos cantis pendurados para saciar a sede nos longos dias de calor que não tardariam por serem resfriados. O tempo parecia não passar e o medo tomava conta dos dois mais e mais; a Guerra, tinha dito Atti. O pensamento de ambos parecia ser o mesmo. Fugir... fugir para longe. Mas, antes de qualquer coisa o médico. Os pracinhas estavam se retirando e o comandante dizia alguma coisa em italiano que de tão apressados não conseguimos entender. Agora só nos restava entrar para ver o médico. E, foi o que fizemos. Ao batermos na porta, fomos atendidos pela governanta que logo foi mandando que colocássemos a rapariga na mesa de operações e que o Doutor estava se preparando para retirar a bala do braço. Como ele já sabia não sabíamos, porém imaginávamos.
Passados uns dez minutos, ele veio já com a bala na mão, com um sorriso amigo e explicando todos os detalhes.
- Sr. Benito, ela não vai ficar aleijada, vai? – A preocupação era estampada no rosto de ambos.
- Ora essa, Gusto. Ela é uma moça forte, não seria uma bala que a abalaria, não é? – João, sempre otimista, via o mal sempre com olhos de bondade; mas o Doutor os aliviara.
- Os dois podem aguardar até amanhã aqui mesmo. Eu já pedi para preparar o quarto para vocês. Durmam bem e amanhã levantem cedo, pois farão uma longa viagem, e não me perguntem nada.
Guiados pela governanta, passaram pelo quarto onde repousava Atti, e nunca viram beleza tamanha. Deitada em uma cama coberta com um cetim resplandecente pela luz do candeeiro, e com o contraste dourado pelo luar que entrava pela janela e banhava o seu cabelo negro parecido com o barro encontrado onde nascem os rios daquela parte da Itália e que servem para modelar os mais preciosos objetos de uso pelas moças prendadas; seus lábios despojados de carmim que tão bem delineia a sua face; seus olhos negros e chamativos, tão diferentes da beleza encontrada no norte. A suavidade se espalhava por todo quarto. Embevecidos já e quase a ponto de se atirarem na cama, são tolhidos pela governanta que fecha a porta e pede que a acompanhem.
- Este é o quarto de vocês. Deixem suas roupas no cabide para serem lavadas. No embrulho tem duas mudas novas para cada um e um par de sapatos embaixo de cada cama. Lavem-se e durmam com Deus. – Os dois responderam em coro uma Amém mecânico, já que a religião não lhes era inerente. – Se precisarem é só chamar.
Em cima de uma pequena mesa haviam algumas frutas e enquanto Gusto tomava banho, João se deliciava com o sabor e o amargor de seus pensamentos. As frutas o aoçavam e o que Atti lhes dissera o feria imensamente. Por que justo agora que tudo parecia em paz haveria de se desencadear uma guerra. Talvez não passasse de uma simples revolução que não chegaria a fazer diferença. Mas, ela havia sido muito clara entre os espasmos e as plavras balbuciadas. Eles deveriam fugir. Fugir para onde? Nunca haviam saído daquele norte que nunca mostrava nada de novo, as notícias ali mal chegavam, e o que acontecia no resto do mundo, se é que ele existia, ninguém ficava sabendo. A guerra chegara. E por que tanta gene interessada em ajudar-nos?
- Gusto, termina logo esse banho, que eu já estou quase dormindo.
- Calma, já estou terminando.
Não demorou muito e Gusto saiu do banheiro em sua samba-canção nova, indo direto para a fruteira em busca de alimento.
- Para onde será que nos mandarão nosso protetores? Você realmente está a fim de fugir da Guerra, João? Não seria mais fácil ficarmos por aqui e lutarmos junto com as forças convocadas? Afinal é o nosso país!
- Pode ser o nosso país, mas ele nunca nos ofereceu nada. Taxas altas, impostos fantasmas, isso é tudo o que o nosso país nos dá. Nós damos o duro na lavoura de batata para quê? Parra no fim de nossas vidas morrermos como nossos pais. Massacrado por uma revolução burocrática para exterminar um pouco dos italianos aqui existentes! A água está um pouco fria, mas estaremos numa fria se permanecermos por aqui. Não sei você, mas eu vou seguir viagem junto com Dr. Benito e com mais quem vier com a gente. Passe-me a toalha por favor.
- João, não é assim, você já pensou se nos pegam? O que pode acontecer? E, ainda tem o problema de Atti. Ela está ferida!
- O Doutor vai com a gente!
- Mas, é uma viagem dura, longa até mesmo para nós que somos jovens!
- Deixemos para pensar na viagem mais tarde. Vamos nos deitar e pensarmos quando já estivermos bem longe daqui. Boa noite.
- Boa noite. Porém, ainda acho que deveríamos pensar bem antes de tomarmos decisões.
- Boa noite, Gusto. – Agora estava meio irritado e Gusto percebendo isso deu as costas para João e fingiu dormir. A cama parecia o cárcere, e estando longe de casa não via como poder dormir. Virava para um lado e para o outro, esticava as pernas e nada de arrumar. João estava já no terceiro sono quando ouviu-se do lado de fora alguns tiros e tropelo de alguns animais. Imediatamente, pularam da cama e vestiram suas roupas indo encontrar com Benito no corredor.
- O que foi isso? Perguntou Gusto parecendo estar com medo e já suando a ponto de molhar sua camisa nova.
- Nada. Precisamos sair daqui o mais rápido possível. O Doutor incentivava. – As forças do Doutor Giuseppe Mazzini estão prontas para combater os Renegados Alpinos que querem o afastamento do Governador Diego Mantenelli. A situação vai ficar crítica. Eu já havia reservado passagem em uma diligência que sai a qualquer hora que eu necessite. João, vá pegar a Atti enquanto eu e os outros arrumamos as coisas. Gusto vá acordar a Senhora Ciappo, que parece uma pedra depois de deitada. Rápido todos vocês, rápido. – As ordens iam sendo obedecidas rapidamente, enquanto lá fora o tumulto aumentava.
- Atti, acorde! Vamos, acorde! Precisamos ir embora deste lugar para sempre. Acorde querida, acorde! – Ele pegava suavemente em suas mãos e ao sentir que ela despertava, tomou-a nos braços e dirigiu-se para a diligência que os aguardava nos fundos da casa.
- Rápido, deite-se no banco acolchoado e entrem rápido. Vamos Cia, suba rápido, você está nos atrasando! – A senhora Ciappo ficou irradiante e por um momento deu graças a Deus por estar indo embora com o Doutor, ainda mais agora que a tinha chamado por Cia. Teria longos momentos com ele. Ela podia pressentir isto e em meio a tanta desgraça, ainda assim conseguia sorrir. – Rápido cocheiro, vamos direto para Vicenza, porém não force muito os cavalos. Temos todo tempo do mundo longe desse pandemônio.
Deixando o tiroteio para trás, os integrantes daquela troupe não entendiam o porquê de tanta agitação e de tantos acontecimentos em tão pouco tempo. Como poderiam vidas assumir tão caudalosos caminhos em tão curto espaço de tempo. Apenas olhavam para trás e imaginavam se um dia voltariam àquele lugar. Porém, antes de dobrarem a última curva, pudemos ouvir um estrondo como o de um trovão e ver um lampejo avermelhado subindo m direção às nuvens. Quem teria vencido? Nas mãos de quem estaria Gorízia agora? Muitas dúvidas surgiam, mas a decisão já havia sido tomada.

Capítulo II

A paisagem à borda da estrada era maravilhosa. Os olhos buscavam explicações nos altos pinheiros selvagens que, com o seu verde faziam um belo contraste com o azul avermelhado pelo sol que despontava detrás dos montes. Olhos buscavam em outros olhos explicações, mas não as encontrava. Alguém deveria saber o que tinha acontecido, e esse alguém deveria ser o Doutor Benito. Todos se voltaram parra ele e juntos fizeram a mesma pergunta. – O que está acontecendo? Mas a resposta foi um longo silêncio quebrado somente pelo gemido de Atti, que, pelo desconforto da viagem começava a sentir dores no corpo. Variava às vezes chamando sua mãe que havia deixado para trás e nem o sabia. A vegetação agora estava mais densa, e o frescor emanado da sombra que rodeava a diligência trazia o perfume das pequenas flores à beira do caminho. E, foi com o perfume que o silêncio foi quebrado.
- Doutor Benito, sei que o Senhor não está com vontade de falar nesse momento, mas é importante que tenhamos algumas respostas. Nós não deixamos ninguém para trás, contudo Atti tem uma mãe em Gorízia. – João foi o primeiro a lhe dirigir a palavra.
- Não, ela não tem mais uma mãe lá. Antes de sairmos fui chamado para atende-la e já estava morta. Assim, nada nos impede de continuarmos nosso caminho.
Deixamos a terra plantada. – Atalhou Gusto. – E, nem mesmo sabemos por que cargas d´água o Senhor está tão preocupado conosco. Estamos fugindo de nossas obrigações.
- Não. Vocês não estão fugindo de vossas obrigações. Muito pelo contrário.
- Como não estamos fugindo? Acaso isso não é deserção? Ou o Senhor tem outro nome? – João estava um pouco exaltado.
- Não estão fugindo, não. Está tudo arranjado. Assim que chegarmos em Gênova, tomaremos um navio e seguiremos para uma terra que promete muito. Lá sim vocês serão verdadeiros lavradores.
Mais uma vez o silêncio tomava conta e boquiabertos não conseguiam perguntar mais nada. Atti estava bem. Não havia resquícios de febre e mais à tarde já deveria estar acordada e pronta para nadar e fazer algumas coisas leves. A viagem prosseguia sem que tivéssemos encontrado alguém pelo caminho, e como já entardecia, o cocheiro, um homem simples, de chapéu de abas estreitas e calça e camisa molhadas pelo suor disse que deveríamos passar a noite em algum lugar por ali, já que os cavalos estavam cansados , e a viagem durante a noite, mesmo com a luz da lua, se tornaria difícil. Consentindo com tal decisão, Doutor Benito pediu que montássemos uma barraca para eles pernoitarem e sugeriu que as mulheres dormissem nos bancos acolchoados da diligência. Uma fogueira foi feita para aquecer o corpo, pois o frio durante a noite se acentuava naquela região baixa e entre árvores. Atti, já percorrendo curtos caminhos foi seguida por João que sentia-se cada vez mais atraído por aquela beleza que também era cobiçada por seu primo e companheiro. Dar a notícia da morte da sua mãe não era algo fácil, mas deveria se feito por alguém e tomou coragem quando percebeu que ainda a beleza do seu olhar o enfeitiçava.
- Atti, querida, você é tão jovem, tão bela! Senta aqui perto de mim que eu preciso lhe falar.
- Fla que eu estou ouvindo. – Parecia uma ilusão ouvir sua voz doce pela primeira vez desde que havíamos saído da Gorízia. – O braço ainda me dói, e eu prefiro ficar um pouco em pé.
- Tudo bem, mas eu gostaria que você estivesse sentada ao ouvir essa notícia.
- Será que é o que eu estou imaginando?
- O que você imagina, minha querida?
- Ah! Não estará querendo me pedir em casamento? Ou quem sabe pedir para que eu seja a sua amante incondicional?
- Não é nada disso sua tolinha! O assunto é sério. Antes de sairmos de Gorízia, o Doutor Benito fez uma visita para a sua mãe...e...
- Não! Não termine por favor... Você quer dizer que ela...Oh! João , que coisa horrível! Como a guerra pode ser tão má para com a gente? Como? – Atti se debatia nos braços de João e este a acalentava dizendo palavras frívolas, porém consoladoras. Ela continuou a chorar por um longo tempo nos ombros dele, até que se afastou decidida.
- Meu destino já era traçado. Eu vou seguir com vocês até onde forem. Se é assim que devemos terminar, assim terminaremos.
- Voltemos para junto dos outros que já devem estar preocupados. – Mal disse isso e sentiram que Gusto se aproximava rapidamente.
- Doutor Benito pede que vocês se apressem, pois devemos sair bem cedo.
- Já estamos indo, não estamos querida?
- Sim. Vamos que já está ficando tarde. – Os três dirigiram-se para a diligência e no olhar de Augusto podia-se perceber o amargo sabor da derrota.
A noite já ia alta quando Gusto sentindo vontade de satisfazer uma das suas necessidades fisiológicas, levantou-se e dirigiu para um dos lados da barraca suas pernas cansadas. Em meio a isso, pareceu ouvir um barulho das patas de um cavalo que estava ali por perto. De olhos e ouvidos atentos, ele caminhou um pouco mais para a direita e percebeu que vinha para o lado deles um cavaleiro, que por estar um pouco escuro, não distinguia a fisionomia. Ao aproximar-se da comitiva, sem retirar o capuz e a capa, desmontou apressadamente como alguém que já faz isso há muito tempo. Dirigindo-se par o seu lado, pode apenas observar a luz que emanava dos olhos em sua direção. Permaneceu ali imóvel, sem poder tomar uma decisão. Parecia uma bruxa, uma princesa... uma princesa de Avignon. Lá sim moravam as princesas, lá elas cresciam e procuravam esposos. O que estaria ela fazendo tão distante de sua terra? A mágica da ela princesa o envolveu por instantes que pareceram eternidade. Ela o havia beijado e seduzido para o capim espesso que cobria a terra fértil daquele espaço. Foi arrebatado parra o mundo do conto-de-fadas e naquele lugar parecia não existir guerras, amores perdidos, centelhas de dúvidas, fugas; tudo possuía uma ordem real e homens e mulheres caminhavam leves pelas Campinas floridas.
- Gusto, venha... venha par onde os lírios são o perfume que embriaga a noite, onde os animais são livres do assassínio humano, onde borboletas nunca foram larvas e onde o amor impera sempre...
- Não, eu tenho meus amigos aqui!
- Não resista, nessa terra, as delícias são inúmeras, o poder não corrompe o homem porque ele não existe, nós nos auto-governamos, somos donos de nós mesmos...
- Não, eu não quero ir. Eu não posso ir...
- Vamos poder sentar perto dos riachos e ficar observando a água correr mansamente, sem tormentas nem furacões... vamos poder sentir a liberdade que você nunca sentiu... aqui tudo é mais lindo! Venha... venha.. venha...
- Não! Não! Não!
- Ei, Gusto, acorde, vamos acorde rapaz! Você está todo amarrotado. Parece que brigou com um monstro!
- Que nada João, eu estava sonhando. E, algo me diz que devemos desistir dessa viagem maluca.
- Que nada! Os sonhos são inquietações dos dias anteriores. Não se perturbe. Arrume-se e vamos embora, as coisas já estão prontas.
- Depois não diga que eu não lhe avisei! – Guto continuava impressionado com o que tinha acontecido durante a noite.
Vicenza continuava um pouco distante de onde estávamos e o jeito foi continuarmos naquele caminho devagar e sempre. A saudade já começava a falar alto em nossos corações, e mesmo assim não olhavam para trás. O trote do cavalo marcava o compasso, juntamente com o assovio do cocheiro que já parecia fazer parte do grupo e havia dito querer participar de nossa viagem até no fim, ou seja a Nova Terra. A Senhora Ciappo agora mais entrosada, comentava trabalho com linha para Atti, que se mostrava cada vez mais curiosa em aprender. Doutor Benito lia um tratado científico acerca de lesões superficiais e alopecia androgenética, pelas quais era fascinado. Os dois jovens levantavam idéias do que fazer após chegarem ao destino prometido pelo Doutor e faziam cálculos do que deveriam comprar para seguirem viagem. Mais uma vez, a tarde chegara e uma chuvinha fina teimava em cair quando o cocheiro Camillo avistou mais ao longe uma fazenda. Doutor Benito sugeriu que ele para lá os levasse.
- Boa tarde. Poderia informar onde estamos?
- Boa tarde. Vocês estão na fazenda Regatto. Eu sou Grigorinno Regatto à sua disposição. Vamos entrar.
- O Senhor tem uma bela fazenda aqui, Senhor Grigorinno, aliás uma das mais belas que eu já conheci.
- Enquanto os outros desciam as coisas da diligência e as senhoras se lavavam juntamente com as outras mulheres da casa, Doutor Benito e Senhor Grigorinno continuavam a animada conversa.
- Doutor Benito, o que faz um homem como o Senhor por estas bandas, que mal lhe pergunte.
- Estamos empreendidos em uma viagem para as Novas Terras. A Itália está se tornando perigosa para as pessoas.
- Realmente, o Governador Diego Mantenelli vem provocando alts confusões durante o seu mandato. Já está na hora de alguém cortar o pescoço dele.
- Bem, enquanto isso não acontece, vamos tocando o bonde.
- O Senhor aceita um aperitivo antes de tomar um banho? A refeição já está quase pronta.
- Aceito. Obrigado. – Doutor Benito era muito sociável e não faria nada que pudesse atrapalhar nossa estada ali naquela noite.
- Estávamos sentados à mesa, e , após terem sido feitas as orações de praxe, os alimentos foram sorvidos com gana, já que fazia algum tempo que não comíamos à mesa. Gusto sentado ao lado de uma ragazza bonita não tirava os olhos e parecia ter ficado congelado pela filha mais nova da família Regatto. Anna Badaglio Regatto, olhos castanho-claros , cabelos encaracolados, corpo sensual e muito conversadeira, não demorou para cativar Gusto, que ficou parecido com manteiga derretida. O silêncio imperou durante todo o jantar, e logo após fomos convidados para a sala onde poderíamos conversar mais sobre aquela família e suas atividades. O primeiro a dirigir alguma palavra foi Gusto, e justamente para a belíssima Anna.
- Anna, você não quer mostrar-me o jardim? A noite está linda e assim poderíamos conversar um pouco mais à vontade. O Senhor nos permite, não é? – Dirigindo-se ao pai da moça.
- Vá Anna, mas não se distancie da área coberta, pois a chuva pode-lhe fazer mal.
- Está bem, papai.
- Que tal nós fazermos companhia a eles, Atti?
- Tudo bem, vamos!
Enquanto os quatro se dirigiam para o jardim coberto, na sala, as duas senhoras e mais as outras duas filhas conversavam sobre trançados de linhas e outras futilidades; os dois velhos faziam longos discursos políticos, criticavam o cristianismo e seus padres, falavam dos tempos bons da juventude quando a Itália era ainda um país em desenvolvimento e sem guerras. Um café foi servido e a conversa continuou animadoramente.
- Então, como eu estava dizendo antes, o governador deveria ter um pulso menos rígido, pois o povo está pagando o que não deve desde que eu me entendo por gente, e olha que papai reclamava, vovô reclamava, parece que isso não tem fim. Quando chegaremos a um consenso entre homens e poder. Hitler ataca com vias duvidosas e o povo está amedrontado. Não sei onde vamos chegar.
- Senhor Gregorinno, não seremos nós, ainda , que endireitaremos este Velho Mundo. As facções podem ir por diversos lados, mas no final todos encontrarão um ponto em comum. O Senhor pode acreditar nisso.
- Se o Senhor diz!
- Acho melhor nós nos deitarmos, amanhã deveremos partir cedo para Vicenza. Vou chamar os rapazes.
- E eu vou pedir para prepararem os leitos. Até amanhã. – A noite fechou-se sobre todos e enquanto dormiam em suas camas, sossegadamente, mais acima, uma guerra parecia não ter fim.
- O dia raiou sem a chuva. Um sol diferente nascia e a esperança de que seria melhor do que os anteriores fazia-se perceber no semblante de cada um durante o café. O cocheiro veio avisar que os cavalos estavam atrelados e já poderiam seguir viagem. As despedidas foram rápidas e logo se viram a caminho.

Capítulo III

Dias e noites viajamos para chegar aVicenza. E, foi numa tarde ensolarada que avistamos os primeiros sinais de civilização. A torre alta da igreja, os telhados avermelhados das casas e as árvores sedentárias que cobriam quase toda a região. Uma enorme cadeia de montes com suas florestas de pinheiros selvagens e castanheiros, culturas de aveia, batata e arroz em imensos campos cultiváveis. Por onde passávamos, sentíamos a vontade inquieta de permanecer, já que parecia tudo calmo. Ao aproximarmos mais, percebemos uma agitação um pouco familiar, assim preferindo ficar mais afastados do interior da cidade, abastecendo-nos em um depósito mais a margem da estrada. Como ainda era de manhã, Anna e Atti pediram para comprar algumas peças femininas, das quais já estavam desprovidas. Assim que tudo foi arranjado seguimos viagem, achando realmente que seria impossível nós nos aproximarmos de uma decisão contrária à saída de nosso país. Anna havia forçado sua entrada na comitiva e quando foi descoberta levou o maior susto.
- O que faz você aqui no meio desses trapos velhos?
- Não me mande embora, Doutor. Eu deixei um bilhete para meu pai e ele não virá atrás porque eu disse estar apaixonada por Gusto e ele por mim. E, que nos casaríamos assim que chegássemos à Terra Nova.
- Está bem! Está bem! Só que a responsabilidade é toda sua e de Gusto, caso alguma coisa venha a lhes acontecer.
- Oh! Gusto, não é maravilhoso podermos ficar juntos?
- Realmente, Anna, você me surpreendeu e estou muito feliz por isso. Avignon realmente ousou me presentear não com uma de suas princesas, mas com a princesa mais linda.
- Bem, agora que está tudo esclarecido, vocês poderiam deixar-me a sós com a Cia, por favor.
- Claro, vamos dar uma volta.
- Cia, agora que eles já estão distantes, quero lhe dizer que tenho sentido sua falta e que me desculpe por alguma falha.
- Ah! Doutor, não tem do que se desculpar. Mas, temos um assunto mais sério para tratar. Anna tem tuberculose crônica e o médico de Vicenza não lhe deu muito tempo de vida. Precisa ser cuidada e talvez a terra para onde vamos possua um clima mais agradável.
- Então, a preocupação do pai em que ela saísse na chuva não era extremismo e sim por motivo sério. Eu bem que tinha percebido alguma coisa. O que mais você sabe que eu deveria saber?
- Nada. Só isso. Mas não devemos comunicar o fato a Gusto, que parece tão feliz ao lado dela. Deixemo-los viver até que Deus resolva tira-la dele.
- Realmente, não vamos tornar as suas vidas mais amargas. O tempo se encarregará disso.
- A agitação política está séria, não é Doutor? Corre boato que os portos de Gênova e os demais estão sendo fechados. E, se não conseguirmos chegar em tempo para o embarque?
- Eles não podem fechar os portos. Não por enquanto...
- Ah! Mas a Senhora Regatto me disse que nem a vegetação está mais tão bela quanto era. A política entristece até os animais no pasto.
- Isso é verdade Cia. O que nós podemos fazer senão fugir para não sermos mortos e preservarmos os nossos filhos bastardos dessa desorganização toda?
- É Benito, às vezes as razões são incompreensíveis!
- A viagem continuava sem maiores complicações. O braço de Atti estava ótimo e Anna apresentava problema algum. Até parece que a emoção de estar viajando a rejuvenescia e lhe dava forças para lutar contra tudo o que pudesse ser ruim para ela. Passamos por Verona, Cremona, Pávia e agora nos dirigíamos para Gênova, onde tomaríamos um navio em direção ao Estreito de Gibraltar, rompendo o Oceano Atlântico com os nossos desejos de liberdade. Havíamos saído de Pávia há dois dias, quando tivemos que parar para consertar uma das rodas que havia quebrado ao transpor uma pedra. Aproveitamos para almoçar ali mesmo. Enquanto as mulheres preparavam os alimentos, os homens cuidaram para que fosse consertada a roda e depois foram dar um mergulho num riacho próximo. Havia uma queda d’água de uns vinte metros aproximadamente e como nos aproximávamos do Mediterrâneo, ali já encontrávamos uma vegetação que lembrava as enseadas do mar Ligúrico; loureiros, alfarrobeiras, cipestres, larícios, pinheiros ainda selvagens, pois os marítimos se diferenciam um pouco destes por suas folhas. Avignon não deveria ser tão bela quanto àquele pedaço de terra. A água era de um azul que chegava a esverdear-se como o mar. A fauna e a flora ali faziam inveja ao mais belos ornamentos da igreja papal. Parecia que deveria me convencer a ficar, porém a decisão fôra tomada. Eu partiria contrariando a todos os mandatos, mesmo que fossem de Deus. A guerra não deixaria nem mesmo o cheiro do mais belo burguês que em suas águas e sais não se cansava de banhar. Por isso eu precisava conquistar Avignon, a Terra Nova. O almoço estava pronto, nos dirigimos para ele com toda volúpia do soldado que não come há um mês. O sabor dos alimentos era um presente divino, o cheiro deles um presente dos deuses do Olimpo e o formato da escultura mais perfeita feita pelo mais delicado escultor. Pensamentos foram interrompidos por um diálogo não muito interessante.
- Onde fica Avignon, Doutor?
- Onde fica o quê, Gusto?
- A Terra Nova, Doutor; Avignon. Onde tudo é perfeito e não se tem guerra, nem mortes, nem briga pelo poder.
- Além do mar... muito distante onde a terra é de todos e ninguém precisa brigar, porque ela é abundante.
- E tem terra para todos?
- Dizem que sim.
- Mas, e como iremos atravessar todo esse mar, meu Deus?
- Através de um navio, João. Você já viu um navio?
- Não, só nos desenhos da escola, quando eu estudava.
- Eles são bem parecidos.
- É verdade que podemos ter enjôos?
- Nem todos, nem todos... mas às vezes nós os temos fora dele mesmo, e em terra firme. Então não se preocupem com isso.
- Doutor, daria para o Senhor explicar agora por que estamos fugindo?
- Vocês não vêem que os soldados estão por toda parte, que se vocês fossem pegos já estariam mortos a uma hora dessas; jogados por aí com um monte de balas em suas cabeças, não entendem isso? Por que é que teimam em ficar tocando nesse assunto?
- É que somos estranhos para o Senhor. Nossos pais morreram na última revolução e não tínhamos mais parentes. Por que então nos ajuda? João estva um pouco irritado e ainda bem que Cia surge com uma sobremesa deliciosa para acalmá-los.
- Vamos adoçar os ânimos por aqui. Atti, Anna, João... calma todos, o caminho a percorrer é longo e não chegaremos inteiros ao nosso destino.
- Você está certa Cia, vamos fazer as pazes e não tocar mais nesse assunto.
- Ainda acho que o Doutor está escondendo alguma coisa. – disse Gusto dirigindo-se à diligência.
Mais um companheiro juntara ao grupo nessa última parada. Celitto, um homem de seus trinta e poucos anos, com pouco cabelo, físico de trabalhador braçal, porém amigável e solto em sua conversa, conquistara-nos com sua lábia. Após um longo papo decidiu patir com a gente, e assim era mais uma boca a ser alimentada, se bem que tinha umas reservas e colocou a nossa disposição. Estava cansado de trabalhar e nunca possuir nada. Vivia sonhando com o dia em que teria o seu torrão para plantar e descansar em paz. Tinha passado pela fazenda do pai de Anna dias atrás e foi assim que ficou sabendo da nossa existência. Trazia notícias deles e mandava lembrança a todos. Anna ficou irradiante e jurou escrever uma carta assim que pusessem os pés em Gênova. Mais uma vez a diligência partiu em direção a sua última parada em solo italiano. Gênova ficava a uns poucos metros do Mar Ligúrico e como toda cidade portuária, havia se desenvolvido bastante.O comércio se desenrolava com grande agitação. Os soldados movimentavam-se de lá para cá, e as pessoas despreocupadas pareciam nem se aperceber de tal detalhe na rotina da cidade. Os cafés estavam abertos e as pensões que existiam pareciam estar lotadas. Enquanto Anna e Atti foram despachar a carta para o Senhor Regatto, os homens foram descarregando a diligência com a ajuda de um servente da pousada onde ficaríamos. Alugamos dois quartos pequenos, dividindo assim o sexo feminino para u e o sexo masculino para o outro. Celito e Gusto disseram que iriam dormir na estalagem com os cavalos. Tiramos o pó das nossas couraças e logo em seguida estávamos reunidos para o jantar. O porteiro nos indicou um lugarzinho do outro lado da rua, e assim nos dirigimos para lá imediatamente.
- Por favor, pode nos arrumar uma mesa grande para que possamos nos sentar juntos? – solicitou o Doutor Benito muito calmamente ao rapaz que estava servindo os fregueses que ali estavam.
Sentamo-nos onde o ar era fresco e a brisa marítima não cansava de beijar a face das duas donzelas que ali estavam. Servimo-nos do macarrão e queijo, regados com um bom vinho. E após terminarmos, ainda em silêncio, fomos verificar onde era a Agência de Transportes Marítimos, o que não foi difícil. Assim que amanhecesse iria lá procurar um bom navio e o que partisse mais cedo. Voltamos para a pousada e dormindo sentimos o dia chegar novamente, e com ele mais surpresas. O cansaço não havia permitido que presenciássemos o fato, mas apenas um navio restara em todo aquele imenso porto. O ataque havia sido de surpresa. Os Alpinos haviam chegado sorrateiramente e atiraram fogo aos navios sem que houvesse tempo para defesa. Deus não havia nos abandonado e com isso ainda poderíamos zarpar. As pequenas tropas logo após esse incidente haviam sido controladas e estavam sob vigilância no acampamento da Força Italiana. Até quando as revoltas continuariam? Até quando continuaríamos a ter sorte? Embarcaríamos dentro de quatro horas, mais exatamente ao meio-dia, e tinha muito para se fazer. Avignon, Terra Nova ou sei lá qual o nome tinha agora, já estava bem próxima de nós. Bastaria atravessarmos o mar. Esse mar que nos causa tanto medo com seu verde conquistador, com suas ondas chamativas e o frescor de sua brisa. Ele às vezes podia ser bravo, assim diziam os navegadores, porém seu fascínio era grandioso e até suplicante. Doutor Benito refletira muito em pequenos pedaços de papel sobre a mesa à hora do jantar e mormente esquecidos, achei por direito pegá-los . E lendo, pensei logo na risível filosofia que me foi dada no colégio; tão sôfrego e pedante era que de nada me valeu. Os ministros do povo fazem o que bem querem e nada mais. Tudo para si. A população que seja dócil para com eles e aceitem tudo de boca fechada. É, os rabiscos do Doutor Benito estavam corretíssimos.
- Ah! Ligúria que meus pés banham,
Doces tormentas injustiçadas.
Faias, abetos, fontes de vida
presas ao solo desvirginado.
Tua areia branca, Ligúria-
Memória selvagem e livre.
Tua água verde-louro embevece
olhos que te mirem na enseada.
Ligúria, meu último momento
incrustado em teu solo
que divide a minha alma.
Amanhã, longe de ti estarei,
porém ver a mim qual dirás,
que o relento nos cerca.
Berço de guerras serás
até que homens e homens
desistindo, teu canto ouvirás,
no marulhar das ondas,
no repousar do mar,
decapitados, mutilados,
aprenderão a te amar.
João e Celitto venderam tudo que não ocuparíamos mais e o Doutor Benito já havia comprado as passagens. As mulheres já tinham encaixotado tudo que deveria viajar desse modo, e assim nos restava dar um último suspiro e dizer adeus à nossa terra que ficava para trás na eminência de ser destruída. O sol quente naquele início de tarde e nem mesmo os rabiscos do Doutor Benito conseguiram suavizar o amargo sabor da despedida. As mulheres choravam e Atti ainda mais por saber-se sem mãe. Quem haveria uidado dos funerais dela? Quem teria chorado por ela? Quanta tristeza havia na partida? Assim seria para sempre? Tinham a certeza de que não deixavam ninguém para trás e isso aliviava um pouco o sofrimento. O Mar Ligúrico os recebia de braços abertos e Cia orava para que tudo corresse bem na viagem. A proteção divina, dizia ela, era o maior conforto das almas.

Capítulo IV


A batata está pronta para ser colhida, e chega mais uma diligência no povoado da Gorízia que não se cansa de receber bem os que por ali passam. Dessa vez, do seu interior não sai uma pedra preciosa, mas sim um jovem outor que acabara os seus estudos na França. Sem destino resolvera tentar sua sorte no norte da Itália, já que sabia ser este um país pobre e necessitado de toda ajuda possível. Não demorou muito tempo para fazer amizade com o pessoal e foi conquistando seu espaço de Doutor bem informado e zeloso para com sua comunidade. Já há uma semana e com a festança que vinha sendo preparada para o início da colheita, não lhe faltara convite por parte das raparigas do vilarejo.
- Como vai Doutor Benito? – Todos o cumprimentavam por Doutor, e, às vezes em seu interior ele mesmo ria de si, pois tão jovem e já com tão alto predicado.
- Resolvera ir ao baile que marcava para o outro dia o trabalho árduo, às vezes que trazia resultados horríveis nas costas dos catadores de batatas. O baile era regado com muito vinho e queijo e o puro bacalhau acompanhado de menestra, que era servido até que houtesse um último convidado. As raparigas ficavam à volta dos músicos esperando que alguém as convidassem para dançar. Doutor Benito, um pouco tímido para os assuntos do coração não teve coragem aquela noite, mas acabou nos braços de uma linda mulher que o envolveu com seu perfume suave, seu olhar provocante e suas formas arredondadas e roliças.
- Não me acanhe por favor, linda donzela! – Tentava explicar-se sem solução.
- Qual é o nome de tão lindo homem, com quem de repente me deparo?
- Desculpe-me, Senhorita. Estou de saída agora mesmo.
- Leve-me com você. Passaremos uma noite linda. E, não precisarei acordar tão cedo amanhã; não do teu lado.
- Contenha-se, por favor. O que falarão os outros ao nos ver assim tão íntimos?
- Não se preocupe com o que dirão os outros, mas sim com o que poderemos fazer.
- A noite havia sido tremenda para ambos, mas a contar daquele dia, Benito não mais teria sossego em sua vida. O sol raiara diferente naquela manhã. Um vermelho tão denso que parecia prenúncio para a morte. Ele não estava sentindo-se bem e por isso resolvera acompanhar de perto o início da colheita. O arado ia sulcando a terra, deixando as batatas à mostra e os catadores iam atrás apanhando e colocando em pequenos balaios. A terra era fértil e mostrava-se produtiva. Após essa cata, seriam plantados aveia, arroz, milho ou trigo. A entressafra era muito importante para os agricultores. Ajudavam a ganhar umas liras a mais. Doutor Benito olhava entusiasmado para toda àquela gente que não cansava de ficar curvada sobre as pequenas bolas que se espalhavam pelas fileiras demarcadas.
- Não quer vir ajudar, Doutor? – Perguntou Ginna Busik, que o fez lembrar da noite passada.
- Não, obrigado. Acho que não consigo ficar agachado por muito tempo. – explicou-se meio acabrunhado.
- Venha aqui que quero lhe apresentar meu marido. – Ela o chamou apontando para o outro homem que estava agachado duas fileiras abaixo.
- Laetto, este é o Doutor Benito, o novo médico que chegou na Gorízia há pouco tempo.
- Como vai Doutor? – Apresentou-se apenas dirigindo um olhar chamuscante para o lado do outro.
- Há quanto tempo vocês são casados? – Perguntou curioso.
- Há dois anos Doutor,e, até agora não temos nenhum filho, o Senhor acredita?
- Ah! Mas logo, logo vocês o terão!
- É o que espero. –Ginna respondeu olhando bem no fundo dos olhos do Doutor, que sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha de fio a pavio.
-Foi um prazer para mim conhece-los. Apareçam em minha casa para conversarmos. Até mais então.
- Até logo, Doutor. – Respondeu Laetto ainda desferindo punhaladas pelos olhos.
-A caminho de sua casa foi pensando no que se tinha metido e não gostava do que pressentia. Às vezes, amigos lhe contaram das ciladas que haviam lhes armado mulheres do tipo de Ginna. Isso não lhe dava medo. Tinha medo do medo de ter medo do que poderia vir a acontecer e era só isso. Ele tinha consigo que Deus às vezes fazia certas coisas para beneficiar a outrem ou deixar mais felizes àqueles que não gozaram tal felicidade. Se Laetto não podia gerar filhos, e Deus o tomou como instrumento para tal, não iria ficar encucado com tal coisa. Nem mesmo sabia se Ginna fizera aquilo por maldade. Nem mesmo poderia ter ficado grávida. Estava deixando a sua mente dominar. Não podia permitir que idéias tão mesquinhas lhe varressem o espírito. Por que ela não lhe dissera que era casada?
- Doutor Benito, acuda-me por favor. Meu filho! – Uma Senhora havia interrompido seus pensamentos.
- O que aconteceu?
- Meu filhinho está vomitando demais, só o Senhor pode me ajudar! Por favor, Doutor!
- Claro. Claro. Vamos lá. Só vamos passar em minha casa para pegar alguns remédios que poderão vir a ajudar, e meu material para os respectivos exames.
- Deus lhe abençoe, Doutor. Deus lhe abençoe.

Capítulo V

O pequeno menino estava todo lambuzado de uma gosma verde que provocava náusea aos estômagos mais fracos. Era naquela casa que poderíamos analisar a situação financeira da maioria naquela humilde cidadela. Todos os bens que possuíam se resumiam a caixotes espalhados pela casa. O marido de Dona Ciappo estava adoentado e com isso toda responsabilidade recaia sobre ela. A vida lhe era muito dura. Mediquei e em seguida dei algumas explicações e alguns chás para ajudar na recuperação daquela pobre alma. Com apenas um mês e já sentindo todo o peso da vida. Ele escaparia com toda certeza e ajudado pelo bom Deus.
- Ah! Como são lindas as ondas! O mar com esse ir e vir constante dá-nos a certeza de que o embalar de uma mãe que acalenta seu filho é o gesto mais belo e puro da face da Terra. Quando agita-se, deve ser perdoada, porque sempre há um motivo para as tormentas. – João aproximou-se falando calmamente. – Nunca pensei que fosse tão gostoso percorrer caminhos cobetos por água e banhados por um céu tão lindo como esse que vejo agora.
- É João! É bom saber que a paz reina à nossa volta. – Com uma expressão triste, Doutor Benito virou-se para o rapaz que era a representação em pessoa, da alegria de um ser humano.
- Onde estão os outros?
- Estão deitados em seus camarotes descansando. A viagem parece afetar em pouco tempo quem nunca trilhou caminho como esse. O Doutor não é afetado, estou certo?
- Agora estou ficando velho. Não mais sou aquele jovem sonhador que chegou a esta terra anos atrás.
-Ainda é muito jovem, Senhor.
- Bondade sua... mas mesmo os campos mais belos são despojados de suas belezas. Envelhecer dá medo... ainda mais quando não possuímos uma família para nos amparar em momentos difíceis! É, o sentido da vida vai se tornando compacto com o passar do tempo. Assim como essas ondas se debatem contra o casco do navio, também eu já me debati com a vida durante longo e longos anos. Realmente dá medo em pensar estar só. Veja só aquela gaivota voando sozinha lá no horizonte. Aposto que ela já percorreu os mais diferentes caminhos e mesmo assim não se cansa de continuar o vôo. Outras gaivotas perderam seu tempo à beira de mares poluídos, querendo apenas conquistar o seu peixe do dia-a-dia. Eu não sou um acomodado. Mesmo às vezes sentindo-me só, é nesta solidão que vejo companheiros do passado, do presente e de um possível futuro. Mesmo o Sol, com seu dormir demorado, antes de dar lugar para a escuridão ou para a sua amada Lua, dá-nos a certeza de que sempre retornará em algum lugar. Também creio que mesmo antes de minha partida estarei retornando para esse lugar que sempre amei.
- Não pensei que pudesse dizer tantas coisas lindas, Doutor Benito.
- Nem eu, meu filho. Mas a necessidade às vezes se faz suprema e devemos nos virar com o que podemos.
- Veja Doutor, parece fumaça saindo daquele compartimento!
- É verdade! Fogo...fogo...- O Doutor desesperado começou a gritar e imediatamente formou-se a maior agitação no tombadilho. Homens correndo em busca de água para apagar o fogo que estava bem vivo.
- Mulheres para a cabine do Capitão! Rápido, vamos! – O Capitão gritava enquanto o fogo ia se apagando com os baldes de água. Não demorou muito para que folgasse um pouco e o acontecimento passou a ser discutido. A culpa não devia ter sido e ninguém, já que lampiões estavam por todo o navio e a queda de um, no mínimo, poderia ter provocado o incêndio. Porém não custava ficar de olho em algum passageiro suspeito. Ninguém havia se machucado. A lei e a ordem haviam sido restabelecidas e o navio continuava seu caminho. Anna e Gusto, realmente apaixonados, circulavam de mãos dadas o tempo todo. Atti e Senhor Ciappo continuavam seus trabalhos com linha, enquanto Caillo, Doutor Benito e os demais passageiros nãos e cansavam de observar as curiosidades que apareciam.
A viagem continuou calma e com isso Doutor Benito voltou às lembranças de tempos que haviam sido preparados por aquele oceano imenso. O parto havia sido difícil. Ginna Busik, mulher forte, quase não resistira à operação. Não conseguia dar à luz e foi necessária um incisão para retirar o bebê. Pela primeira vea Doutor Benito colocava no mundo uma criatura tão bela. Um lindo menino com seus três quilos e meio, cabelos avermelhados, quase loiros, olhos de um azul infinito que cativava qualquer ser humano dotado de amor. O pai todo feliz agradecia incessantemente, sem saber o que lhe guardava a desventura dos homens.
- O que o Senhor está pensando Doutor Benito?- mais uma vez João se aproximara sem ser percebido, porém deste vez percebera um misto de medo e preocupação no semblante do Doutor.
- Nada de importante. Estava apenas relembrando algumas coisas que me aconteceram...
- Não gostaria de falar sobre elas?
- No momento não... Você está gostando da viagem?
- Já estou me sentindo exausto! Qundo avistaremos o Estreito de Gibraltar?
- Logo, logo... Creio que mais meio dia de viagem e estaremos adentrando o Oceano Atlântico em direção às Terras Novas.
- Tomara que não demore. Parece que a ração já está quase terminando...
- Calma, o Capitão sabe o que faz!
- Realmente devo estar me preocupando sem necessidade.
- Guarde toda essa expectativa para quando desembarcarmos na Terra Prometida.
- Está bem, está bem. Não se fala mais nisso.
- Assim é bem melhor.
- Vamos descer para o camarote, Doutor?
- Vá descendo que eu já vou.
- Estaremos esperando para o jantar. Não se demore.

Friday, March 19, 2004

Caracolando


Um belíssimo caracol,
Quando já ia altíssimo o Sol,
Entre lusco e fusco pelo caminho,
Se distraía com finíssimo raminho.

Helix, da raça dos catassóis,
Morador de raríssimos atóis ,
Filósofo da sombra dos caracoleiros,
Um caramujo por caminhos espiraleiros.

Que pensava aquela Cóclea,
Toda belíssima como a azálea,
Com seus anéis de cabelos enrolados,
Dizer que não valho um caracol , me deixar de lado.

Ah! Não vou ficar de caramunha !
E este raminho será minha testemunha.
Antes que termine este caminho em espiral,
Para ela, decifrarei o enigma do Caracol de Pascal.


Eduardo Aparecido Ambrozeto



Thursday, March 18, 2004

Caramujo


Eu, pelo caminho,
Uma lesma toda acesa.
Quando passa um lagarto
Me deixa a sobremesa.

Eu, pelo caminho,
Um caracol gastropodão.
Quando passa um jardineiro
Me oferece doce algodão.

Eu, pelo caminho,
Um caramujo empolado.
Quando passa um vizinho
Me reparte o cabelo encaracolado.

Eu, pelo caminho,
Um cornetinha lusitano.
Quando passa um caramuru
Me presenteia transparente pano.

Eu, pelo caminho,
Fugindo da antiga Caracol.
Quando passa um investigador
Me multa por falta de farol.

Eu, pelo caminho,
Quando já era bem noitinha.
Fiquei com medo, olhei pra trás,
A Lua prateava minha estradinha.

Eduardo Aparecido Ambrozeto

Saturday, November 01, 2003

A traça do homem de Java

A mão estava pendida sobre as vestes brancas e a traça resolvera penetrar o anular direito, justo onde pusera sua preciosa aliança. As dobras da túnica receberam o jato de sangue finíssimo. O inseto prateado perfurara ao som de “Like Humans Do” e descobrira uns espaços brancos, uns espaços quase amarelados, gerais.
“Justo agora que encontrei um tema para debate”.- pensara Aton, um especialista em vida privada, apaixonado pela sociedade e sua feudalidade; a revolução levaria sua assinatura.
A traça continuara em posição paralela, num sentido dinâmico, constituindo a base da crítica histórica, desrespeitando a própria mecânica celeste. Para alguns, o homem discerne, julga e reflete; a traça não, a traça nunca chegaria, nem mesmo subdividindo-se. Novos espaços em branco para julgamento. Aonde iria essa traça sem um roteiro. Até quando teria lapsos em sua curta memória.
Um búfalo esquecido no tempo pré-histórico sentiu-se acentuadamente moderno quando teve seu lombar anterior devorado; a lepisma carnívora, acelerada e desumana.
“Meu projeto de reconstituição anatômica bem poderia organizar-se na rupestre tentativa estética e mágica”.- Neand, superior em sua área de estudos, sussurrara aos ouvidos de Aton. Dois homens das Ciências num perfeito gozo de suas reflexões.
O luminoso inseto de pernas aceleradas, principal raça das bibliotecas antigas, devorador dos tempos que se agitam através dos céus, sentia-se enlevado. Ao escutar tanta falácia sentia-se com muito mais valor e dela se aproveitava. Conforme o próprio Aton discursara “As pernas de uma fêmea são objetos preciosos”, no antigo reside a cadeira de repouso; no futuro reside, sobretudo uma zona de contrastes.
A figueira tudo ouvia e segredava aos passarinhos, aos ventos, às nuvens e à chuva. Em suas grandes raízes estavam sentados Aton e Neand. Era um prazer. Ela, tão secular, ouvia como ninguém jamais ouvira.
- Então, Neand, como estava a dizer, o Egito foi um presente do Nilo e suas enchentes fertilizantes.
- Com certeza. Um rio nascido de fios cerebrais que se dirigem para o Vale dos Reis.
Vale dos Reis. Lá estava ela, a magnânima prateada, sob o pórtico do maravilhoso templo rupestre a observar os quatro reis que dormem. Estariam dormindo e manter-se-iam assim não atravessasse a camada mais baixa da população egípcia e caísse aos pés do Escriba sentado. A pupila de cristal seduzira o ofício da traça. Ela mesma estava a escrever o seu caminho e acabara ali naqueles pés enormes. Sentira-se atraída pelo olhar expressivo. Seus olhos de traça nunca visualizaram tão belas pupilas. Nem as mulheres conhecidas tinham em seus adornos oculares tão belas pupilas. Esquecia-se da simetria existente entre a morte e a vida. Esquecia-se da caçada de pássaros às margens do Nilo. Esquecia-se das visagens ao topo das pirâmides. Ah, que admirável altura. Sentira ali a importância de seu coração. Teria ela coração. Já lera tantas obras e absorvera o coração dos humanos, mas o que seria um coração. Quem sabe a pedra de Roseta pudesse definir para ela. O êxodo era premente. Precisaria de mais encontros filosóficos. Cavou um espaço para enxergar e ouvir melhor o que estava sendo dito. Como chegara tão distante. Agora visualizava o sol e poderia observar bem.
- Glória a ti, Senhor da Verdade e da Justiça! Glória a ti, Grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça! A ti vim, meu Senhor, e a ti me apresento para contemplar as tuas perfeições. Porque te conheço, conheço o teu nome e os nomes das quarenta e duas divindades que estão contigo na sala da Verdade e da Justiça, vivendo dos despojos dos pecadores e fartando-se do seu sangue.
- Quem são essas divindades, Aton?
- Duplo espírito Senhor da Verdade e da Justiça é o teu nome. Em verdade eu conheço-vos, senhores da Verdade e da Justiça; trouxe-vos a verdade e destruí, por vós, a mentira. Não cometi qualquer fraude contra os homens; não atormentei as viúvas; não menti em tribunal; não sei o que é a má fé; nada fiz de proibido; não obriguei o capataz de trabalhadores a fazer diariamente mais do que o trabalho devido; não fui negligente; não estive ocioso; nada fiz de abominável aos deuses; não prejudiquei o escravo perante o seu senhor; não fiz padecer fome; não fiz chorar; não matei; não ordenei morte à traição; não defraudei ninguém; não tirei os pães do templo; não subtrai as oferendas dos deuses; não roubei nem as provisões nem as ligaduras dos mortos; não auferi lucros fraudulentos; não alterei as medidas dos cereais; não usurpei terras; não tive ganhos ilegítimos por meio dos pesos do prato da balança; não tirei leite da boca dos meninos; não cacei com rede as aves divinas; não pesquei os peixes sagrados nos seus tanques; não cortei a água na sua passagem; não apaguei o fogo sagrado na sua hora; não violei o divino céu nas suas oferendas escolhidas; não escorracei os bois das propriedades divinas; não afastei qualquer deus ao passar. Sou puro! Sou puro! Sou puro! – Aton recitava os provérbios sem ouvir a pergunta de Neand.
- Quem são essas divindades?-inquiria calmamente Neand.
- Ah, caríssimo amigo. Os deuses parecem me iluminar nessa tarde gostosa. Os mortos recitavam orações assim. Não conheço esses deuses. Apenas os escuto. São vozes que chegam aos meus ouvidos com o vento. Você nunca escutou nada?
- Não. Não sou tão puro! Sou, indigestamente, humano.
- Deixa de bobagem, Neand. Todos nós podemos ouvir. É preciso treino. É preciso escutar-se a si mesmo. Um dia você conseguirá.
O impacto fora grande. Ouvidos sensíveis estavam a ouvir. A fome estivera em seu limite. Não se dera conta quando perfurara a cabeça do Touro Alado de Khorsabad e já estava a sugar o ventre sagrado da Deusa da Fertilidade da Babilônia. Seu eixo estava inclinado. Quem sabe fosse vingança de Nergal, senhor do país de onde não se volta. Contudo, por estar em terreno sagrado, retirar-se-ia para o mar; lá, talvez, conseguiria enganar Nergal que agora estava a cuidar das grandes obras santuárias. Sua fuga seria severamente reprimida caso ele viesse a descobrir.
Enfim, a criação do mundo. Enfim, como ela mesma teria nascido. Enfim, precisava consultar o Profeta. Enfim, a água. Originalidade.
A mulher e suas pernas, suas serpentes, sua religiosidade e sua arte. A Mulher de Azul. A mulher-libélula. A mulher e sua tristeza. Minerva. Sacerdotisas. Dama de Elche. Mulher-moeda. Teodora. Devorarei todas. Esparramo-me. A minha luz divide-se. Agora somos seis traças. Seis traças a devorar a vida do camponês medieval e sua lavoura de pergaminhos; as rotas comerciais e seus papéis estocados; os canais de Veneza e os livros de Marco Pólo; os cavalos da fachada da igreja de São marcos e o antigo palácio dos Doges; o selo com efígie de Eduardo, o confessor - anglovmba lei sigillvm meadvvard; o monge copista; o interior da catedral de Chartres e... Ut queant laxis resonare fibris mira gestorum famuli tuorum solve polluti labii reatum. Minha língua e meus dentes estão manchados. Nós seis temos as línguas e os dentes manchados.
Uma enorme cara de palhaço está desenhada. Olhos vivazes. Boca enorme. Cara que não ousa se apresentar ao que é moderno. Cara que não ousa questionar Colombo.
Incunábulos. Como adoraria devorá-los. Faria um convite às traças depois de finalizar o passeio. Agora estava encantada com os provérbios; com a longa barba de Gutenberg; com a Pietà, com A Sibila de Delfos e Moisés, de Miguel Ângelo. Modernidade. Ela seria moderna agora. To be or not to be. Reformas, caríssimos Neand e Aton. Bigode e barbicha a Richilieu; perucas pomposas a Luis XV; pensamento a Rousseau; cultura e ambição a Catarina II; habitar a estação orbital em pleno espaço e revolução meus amigos. Revolução. Cansaço.
O vazio poroso da pedra. Uma nuvem branca. Os restos do Palácio de Cnossos. Os arqueiros persas. Não. Sou agora apenas massa disforme no colorido dos tijolos esmaltados onde séculos após séculos desfilam soldados persas em monótona procissão. E eu aqui vendo tudo.





Wednesday, October 29, 2003

Um certo tapete marroquino...

Entrevista com
Eduardo Aparecido Ambrozeto

Ana Maria de Moraes Souza
1º Semestre de Letras
Faculdade de Ciências e Letras de Ituverava


EDUARDO APARECIDO AMBROZETO nasceu em Nuporanga, aos 04 de novembro de 1966, mas aos 10 anos mudou-se para São Joaquim da Barra, onde continuou seus estudos ginasiais e onde ainda vive, trabalha e planta sua poesia pelas esquinas, praças, ruas e campos desta cidade.
Formado em Letras em 1989 pela Faculdade Barão de Mauá, adquiriu larga experiência como professor I, ligado ao ensino básico. É Professor Efetivo do Estado de São Paulo, tendo sido concursado em Português em 1993. Atualmente é Assistente Técnico-Pedagógico de Língua Portuguesa na Diretoria de Ensino – Região de São Joaquim da Barra.
O tímido Eduardo (na verdade, como diria Clarice Lispector, ele é um tímido muito ousado) participa ativamente de quantos eventos culturais aconteçam em nossa cidade. Por exemplo, ele tem promovido a vinda de vários escritores a nossa cidade, os quais aqui vêm participar de debates, palestras e encontros com os alunos e o público leitor em geral. Entre esses escritores, citamos Luís Galdino, Wagner Costa, Marcelo Cunha e Elza Salouti. Nosso poeta promove inclusive um vasto intercâmbio com grupos teatrais, os quais periodicamente se apresentam às platéias escolares. Ambrozeto, ainda, é assíduo colaborador da imprensa regional (e co-organizador de várias antologias literárias que continuamente são publicadas em nossa cidade.
No plano pessoal, por sua meiguice, simplicidade, simpatia e sincera alegria, nosso poeta é figura querida e admirada por todos aqueles que privam de sua amizade.
Eduardo Aparecido Ambrozeto publicou seu primeiro livro de poemas, Amar: Verbo e Carne, em 1985. Olhar de Primavera, seu segundo livro, veio a lume em 1994 e já está na 2ª edição e Gruta, em 1999. Cumpre-nos salientar que os livros contaram com o decisivo apoio moral e financeiro dos senhores Sebastião Fernandes Filho , José Mauro Ambrozeto, primos de Eduardo e do tio querido, Francisco Ambrozeto. O poeta participou ainda das antologias Rabiscando Sentimentos (1987), Avulsos (1994), Mixto (1996) e Pescadores de Palavras (1996). Estas antologias, justiça seja feita, são geralmente custeadas pelos próprios escritores participantes e representam uma atitude pioneira, louvável e perfeitamente válida de divulgação do trabalho poético, sejam contos, crônicas ou poemas, de muitos escritores joaquinenses como Flávio Pereira, João César Prachedes, Eduardo Aparecido Ambrozeto e outros, aqui presentes ou não. Registro publicamente o fato para que as autoridades, a população e os colegas presentes não apenas tomem conhecimento desses livros, mas que efetivamente se empenhem no sentido de dotar nossa cidade de um espaço digno para abrigar tantas e tão heterogêneas manifestações culturais e artísticas, das quais a ALAJ pretende ser um celeiro e ao mesmo tempo um espelho. São Joaquim da Barra não pode mais continuar a ter apenas manifestações esporádicas e logo abortadas, como o foram o Madrigal, o Grupo de Teatro Luz e Sombra, o Núcleo de Cultura e Arte e tantos outros. Em meu próprio nome, em nome da ALAJ e de meus colegas artistas, agradecemos publicamente o apoio que temos recebido da Prefeitura Municipal, na pessoa do DD Prefeito Dr. Jorge Antônio Barbosa Sandrin, e colocamo-nos a sua disposição para estudarmos um projeto cultural em parceria e invertermos o deplorável estado da arte e da cultura em nossa cidade.
A poesia de Eduardo Ambrozeto é essencialmente lírica. O que é a poesia lírica? O que é ser um poeta lírico? O que é lirismo? Lírico, lírica, lirismo, derivam de lira, instrumento musical que, na Grécia Antiga, acompanhava a declamação ou a leitura de poesias. O poeta lírico é aquele que, escrevendo poemas em versos livres e brancos, sonetos, odes, elegias, baladas e outros subgêneros poéticos, procura extravasar seus sentimentos, emoções, pensamentos e lembranças, geralmente sentidos em profundidade por seu EU poético. Assim, o gênero lírico se caracteriza sobretudo pela expressão de idéias ou sentimentos pessoais, os quais se originam das muitas experiências e vivências do poeta, como o amor, a solidão, a amizade, a perda de alguém amado, a natureza. O gênero lírico, por seu caráter pessoal e confessional, está presente em todas as literaturas, desde os gregos e chineses clássicos até a poesia medieval, a renascentista, a romântica, a moderna. Há uma extensa tradição, pois, pesando sobre os ombros de nosso Eduardo. De qualquer forma, porém, é esta tradição que alimenta e valida a nova e atualíssima produção poética, de Eduardo sobretudo, que em vários momentos de sua poesia faz jus aos grandes mestres do passado. Assim, sua temática engloba tanto os poemas de amor, mostrando-nos a paixão, o sentimento de perda ou de realização amorosas, o mal de amar (como em Camões), quanto temas como a natureza, a amizade, a ciranda urbana. Nosso poeta, ainda, questiona-se permanentemente sobre a aventura da poesia e sobre seu mistério, revelando aguda percepção metalingüística. Assim, para além do mero exercício retórico, ou para além da frágil composição de versinhos apaixonados, iludidos ou desiludidos, como vemos constantemente em tantos poetas oportunistas, carentes de estudo e conhecimento da verdadeira poesia e da verdadeira literatura, reconhecemos em Eduardo um poeta preocupado com a palavra, com o artifício da palavra, com a lavratura da palavra, com o que está além da palavra. Porque, é sempre oportuno reafirmarmos, a palavra é o meio e o fim de toda Literatura.
O poeta tem fortes sentimentos pela Itália, terra natal dos avós:
“Na América onde chegamos
Não encontramos nem palha nem feno
Dormíamos no chão, ao sereno
Como bestas irracionais
E com o engenho de nossos italianos
E o esforço de nossos paisanos
Com o passar dos anos
Construímos países e arraiais.”

Desde 1810, um milhão e seiscentos mil italianos deixaram a bela Itália de Michelângelo, a piccola Itália de tantos outros e aqui chegaram para construir o Brasil.
Hoje, são, pelo menos, 25 milhões de “oriundi”, que trazem a herança cultural e afetiva italiana no sangue e nos cromossomos. Entre eles, Eduardo Aparecido Ambrozeto, que redescobrindo as virtudes e as paixões da mãe-pátria longínqua, firma-se no nosso cenário artístico-literário, expressando o mundo, a vida e o amor em versos e prosa.
Eduardo é também autor de poemas infantis que, introduzidos em nossas escolas, têm proporcionado encontros poéticos com a fantasia - momentos privilegiados nos quais as crianças são convidadas a manipular a estrutura poética e a descobrir ritmos, rimas, repetições e ecos semânticos.
Eduardo acredita no lugar de destaque que a imaginação deve ter no processo educacional, acredita na criatividade e no poder de liberação que a palavra pode ter; assim, se faz um paladino do lema: "Todos os usos da palavra a todos", criando entre outras coisas um instrumental para a educação lingüística das crianças.
Armando símbolos, tecendo caminhos imaginários sobre as páginas, Eduardo oferece aos alunos uma inusitada sensação de intimidade com as palavras e um caloroso enredamento.
A fantasia e a sensibilidade, presentes no mundo infantil, caracterizam a sua poesia.
O que aconteceria se uma barata kafkiana invadisse a nossa imaginação?
E se um estilingue atirasse flores em pássaros aflitos!
Chapeuzinho Vermelho bate à porta de Gepetto para pedir abrigo e descobre que o lobo era uma antiga fantasia que Pinochio vestia quando seu nariz crescia.
Estas são algumas amostras da imaginação, da fantasia e da criatividade de Eduardo.
Passamos agora à apresentação de alguns poemas de Eduardo Ambrozeto, com os quais pretendemos ilustrar o exposto até aqui.

1- Pai Nosso


Pai,
Senhor de todas as maravilhas existentes,
Nosso orientador e guia nas tristezas e alegrias,
Que estais nos Céus a observar atos e pensamentos,
Santificado seja, para toda a eternidade,
Vosso nome que reina absoluto em nossos corações.
Venha a nós o vosso reino que também é nosso
E seja feita a tua vontade mais sagrada
Assim na Terra, que possui tantos recantos,
Como no Céu que nos mostra espetáculos ímpares.
O Pão, alimento de corpos e almas,
Nosso , a cada dia, sacie os nossos desejos,
Nos dai hoje e para toda a Eternidade.
Perdoai desses seres pequeninos, comparados a Ti,
As ofensas mais presentes e remotas,
Assim como nós perdoamos a todos os infelizes
Que têm nos ofendido profundamente
E não nos deixeis cair dos Altos
Em tentações aflitas e insuportáveis,
Mas livrai-nos de todos os males
Que conturbam os nossos seres,
Senhor,
Amém.



2- Palhaço

Pendurado na parede,
procurando o picadeiro,
faz-me rir com suas graças,
dias, meses, o ano inteiro.

Seu cabelo cor de palha,
separado em dois montinhos
parece um ótimo lugar
para pássaros fazerem ninhos.

Sua roupa e seu nariz,
tão vermelhos, tão bonitos:
na roupa , flores azuis;
no nariz, um branco lírio.

O pescoço e os tornozelos,
circundam rendas brancas.
Abre a boca, diz palavras
que alegram às crianças.

Assim que eu crescer
e na parede alcançá-lo,
vou devolvê-lo ao circo
para sempre alegrá-lo.






3-Fases


Quatro cartas
Quatro selos
Uma bandeira
Uma distância
Tão amigos
Tão contentes
Um adulto
Tanta infância

Quatro cantos
Quatro encantos
Uma vida
Uma viagem
Tão próximos
Tão distantes
Um adulto
Tanta infância

Quatro estrelas
Quatro mapas
Uma data
Uma palavra
Tão divinos
Tão meninos
Um adulto
Tanta infância





4- Tapete Marroquino

I
Secos .
Os pés da Grande Mesa estão secos.
Também estão secos os pés das cadeiras que se acomodam à sombra, estanques, da mesma Grande Mesa.
São pés secos, prolongados; os pés pendidos, retorcidos, enviesados nas oito cadeiras - a visita chegará em hora inoportuna - dispostas perfeitamente, bem como toda iguaria seca posta, naquela Grande Mesa.
São uvas secas, destituídas da água que nos obriga a viver no deserto - o fogo queimará cada milímetro da total secura. São secas as palavras pronunciadas pelos lábios secos. A seca palavra que impele cada cadeira contra o seco assoalho de madeira verde. A importância é seca. Flores secas ornam lágrimas secas da vela cuja parafina não escorre e o pavio não queima. Um defunto repousa seco na outra sala e chora a seca verdade da vida.
Um cacto passeia pelo charco.
As roldanas do velho verão instigam o inverno molhado. A alma está seca. O espinho para o cacto é o apêndice para o camelo. Na aridez do cacto a intempérie do charco.
Uma toalha ressequida repousa e tem pesadelos sobre a mesa - o vinho seco derramado nas tramas de sua vida seca.

II

Um lobo observa do outro lado da varanda. Seu olhar e ganido fazem com que desvie a atenção. O lobo está entre duas rosas: uma, vermelha; outra, está amarela.
Abelhas driblam as telhas e colhem o néctar na cobertura florida. Um botão ainda não se desenvolveu e mostra pequenas pétalas e sépalas.
Apenas um botão.
Nuvens escuras engolem o céu e debulham lágrimas secas sobre a cidade.
Olhos pousam numa rolinha que arisca voa rasante em direção ao cacto. Um vento louco sopra sobre cabeças. Um estupor toma conta de almas.
Viajo entre as abelhas e não encontro meu zangão.

III

Mijo na flor amarela, eternizada no tapete de retalhos que pertenceram a outrem.
A flor amarela absorve o mijo que escorre de um membro senil.
A descarga leva a flor. Ainda, minha inconsciência me faz aflorar.
No mesmo tapete vejo margaridas amarelas que desviam-se do jato com suas pétalas rebatedoras.




IV

Um saco exposto balança pendurado no arame farpado.
As farpas do arame dilaceram o saco que aceita passivamente a intransigência entre o não poder se desprender das amarras do arame e o sobrevoar de uma borboleta fertilizada. O mesmo vento agita distraidamente a taboa inerte no centro do lago. Inerte, a lua se demora na noite, opaca pela vontade de nós dois.
O vento já não é mais suave. O balanço agora é atordoado. A dor do vento é insuportável. Subtrai-se um acorde da dor e o vento permanece indiferente.
Os acordes chegam do tapete morno. A poça amarela é mais verdadeira que o saco que balança.
Um homem com varas de pescar passa agitando o seu podão, e, com um leve movimento ceifa a flor espumante.

V

Dois sujeitos ocultos pela bruma da noite, negro véu lanceolado entre a cerca de arame e os pés secos da mesa, passeiam pela lua visualisada entre o reflexo freudiano do espelho e o horizonte demarcado pela sua silhueta.
Um e outro se procuram a cavalgar o Alazão de São Jorge e a manusear sua espada tão certeiramente quanto o fogo cuspido pelas ventas do dragão matutino.
A lua matreira urina na espada os cristais de suas crateras escravizadas pela poeira cósmica.
As bordas do tapete se enrolam em pensamentos enquanto um gozo frenético exala no ar o cheiro da primeira cópula.
Estamos grávidos de nossa linhagem.

5- Tempestade e Ímpeto

Se qualquer dia desses
em minha vida amorosa
o amor se fizer presente
no dia-a-dia de nossas vidas
entre o achar da areia na praia
e o perder-se nas ondas
estarei sempre onde você quiser:
na espuma branca dos rochedos
na silhueta do seu corpo perfeito
na fogueira que arde as cinzas
no trotear de cavalos alados
na tua face rósea e risonha
na tocha que ilumina secretos caminhos
nos teus passos em negra areia
no teu mergulho mais desajeitado
nas rodas que te movimentam
na liberdade dos seus deslizes
nas brincadeiras mais singelas
no vento que esculpe você em meu pensamento
como memória permanente em mim
no seu sussurro mais inaudível
como minha metade a me orientar
através das luas que passam
( e todo mundo sabe que o segredo
mora dentro de mim )
Não é fácil deixar de gritar
aos quatro cantos da noite
todo amor que me contagia
Palavras nada diriam do seu olhar
quando minha vida mudou
por causa desse amor que une
dois seres através de íris-imagem
Seu jeito doce de filme em 38 mm
quadro-a-quadro em minha existência
vistos através dos teus lábios sedutores
Carnudos ao convite de um beijo
que dure um minuto mais a eternidade
enroscados nossos espíritos
tais qual abelha no pólen
e moinho ao vento
Nosso amor é assim
como todo amor deve ser
E hoje, nesse dia verde-mar
gostaria de ser transparente
e dizer o que é comum a todos nós
da forma mais simples
Eu te amo
Sejamos namorados a vida inteira.